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Flip 2021: 'Existe um ditado do candomblé que diz "sem folha, não há orixás"', diz Itamar Vieira Júnior

Paulina Chiziane, que também participou da mesa sobre a relação entre natureza e literatura, acredita que as árvores são o que há de mais sagrado e perfeito
Pauline Chiziane e Itamar Vieira Júnior participa da 19ª Flip Foto: Divulgação e Adilton Venegeroles / Divulgação
Pauline Chiziane e Itamar Vieira Júnior participa da 19ª Flip Foto: Divulgação e Adilton Venegeroles / Divulgação

A vencedora do Prêmio Camões deste ano, a moçambicana Paulina Chiziane , e o escritor do bestseller "Torto arado", o brasileiro Itamar Vieira Júnior , participaram nesta segunda-feira (29) da mesa "Árvores e escrita" na 19ª edição da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip) . Com mediação da professora de Língua e Literaturas Francesa e Francófonas na Unifesp, Ligia Ferreira, a dupla falou da relação de suas obras com as árvores e com a natureza.

Logo no início da conversa, Ligia conta que Paulina começou a escrever embaixo de uma árvore e questiona a autora sobre a relação de sua escrita com a natureza. A escritora explica que, na cultura africana, a árvore é o ser mais sagrado e perfeito que existe.

— Normalmente fazemos uma oração embaixo de uma árvore e, por isso, diziam que os africanos não sabem construir igrejas. Não, a base da árvore é o lugar mais sagrado para nós. No dia que recebi o prêmio (Camões) , estava aqui embaixo, meu lugar favorito, é onde encontro as melhores ideias — diz Paulina.

Curiosamente, Itamar explica que não tinha se dado conta da grande quantidade de referência à natureza que tinha seu trabalho até se deparar com um glossário feito para uma edição italiana de "Torto arado". No glossário, continham todas as espécies de plantas citadas pelo autor ao longo da história.

— O mundo em que se desenrolam as histórias é um mundo vivo. As árvores estão o tempo todo dialogando com as personagens, não é só paisagem, elas têm vida. Eu acredito que os vegetais fazem parte do nosso interior, inclusive. Existe um ditado do candomblé que diz  "sem folha, não há orixás", ou seja, não há divino. É dessa maneira q as espécieis vegetais adentram meus escritos.  — explica Itamar.

A escritora moçambicana concorda sobre a vivacidade da natureza. Para ela, a paisagem é o que dá força e inspiração para construir uma história. Quando escreve, a natureza que a rodeia acaba sendo representada diretamente. A importância da vegetação na vida de Paulina vem também dos mitos e crenças de sua cultura:

— A maior parte das curas vêm da natureza. Vem da folha, vem da casca,  vem da sombra de uma árvore. Aqui, para se cortar um cajueiro é preciso ajoelhar e pedir licença e explicar porquê. Depois, é preciso semear um novo no lugar. Se não rezar, o cajueiro cai na cabeça da pessoa e ela morre. Eu nunca vi acontecer (risos), mas quando colocado isso para a criança, você ensina a respeitar. No dia em que morrer a última árvore, morrerá o último pássaro e o último ser-humano.

Itamar complementa dizendo que como autores, eles estão testemunhando o tempo e o espaço em que vivem e que, dentro disso, a natureza faz parte da vida de maneira intensa, mesmo que hoje se encontre ameaçada.

Nos momentos finais da mesa, Paulina retoma a ameaça da qual Itamar se referiu e faz uma crítica à vaidade humana relembrando a colonização do continente africano pelos europeus:

— Nossas crenças foram chamadas de inferiores, trouxeram máquinas e começaram a destruir tudo. Nós, africanos, temos nosso paraíso no chão, na terra.  Por que tenho que procurar um paraíso nas estrelas? O nosso conceito de paraíso é embaixo de uma árvore. Que pena que o mundo que se dizia moderno achou que era senhor do mundo e fez essa destruição que agora ameaça o planeta inteiro.

A Flip

Este ano, a Flip não tem um autor homenageado, mas um tema: “Nhe’éry, plantas e literatura” . “Nhe’éry” é como os guaranis chamam a Mata Atlântica e quer dizer “onde as águas se banham”. Conforme divulgado em agosto, em vez de um único autor homenageado, a festa será dedicada a pensadores indígenas mortos pela Covid-19 , como o escritor Higino Tenório, o artista plástico Feliciano Lana, o líder guarani Domingos Venite, e a guardiã das plantas de cura do povo Mura, Maria de Lurdes.

Pela primeira vez, a Flip tem curadoria coletiva (uma "floresta curatorial", nas palavras da direção), formada pelos antropólogos Hermano Vianna e João Paulo Lima Barreto, pelo escritor Evando Nascimento, pela editora Anna Dantes e pelo crítico literário Pedro Meira Monteiro.

Realizada virtualmente de 27 de novembro a 5 de dezembro, está sendo transmitida pelo canal da festa literária no YouTube e as mesas de abertura e encerramento serão exibidas pelo Canal Arte 1. Também há salas de exibição em Paraty e em cidades paraenses graças a parcerias com insituições locais. Nas salas de exibição, será mantido o distanciamento social e será obrigatório o uso de máscara.

Nomes como Margaret Atwood, Alice Walker e Conceição Evaristo também estarão presentes na Flip.