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Flip: Conflitos atuais são lidos à luz de 'Os sertões' no terceiro dia

Quilombolas, caiçaras, indígenas e desempregados foram comparados aos sertanejos de Canudos
Terceiro dia de Flip Foto: Leo Martins / Agência O Globo
Terceiro dia de Flip Foto: Leo Martins / Agência O Globo

PARATY — A conversa sobre política e resistência continuou nesta sexta-feira (12) na Flip que homenageia Euclides da Cunha e recorda a luta dos sertanejos de Canudos contra as forças repressivas do governo republicano. Teve comparação entre sertanejos e caiçaras e discussões sobre quem são, hoje, aqueles que a República mantém excluídos.

De manhã, a mesa “Cumbe” juntou o quadrinista Marcelo D’Salete e a Marcela Cananéa, ativista do Fórum de Comunidades Tradicionais Angra/Paraty/Ubatuda, que luta pela preservação das culturas indígena, quilombola e caiçara na região.

D’Salete é autor das graphic novels “Angola Janga”, sobre o Quilombo de Palmares, e “Cumbe”, que reúne histórias de resistência à escravidão colonial. Marcela e D’Salete traçaram paralelos entre a luta dos canudenses com as rebeliões de escravizados e a resistência das comunidades tradicionais hoje.

— O que liga a experiência das comunidades tradicionais hoje com os quilombos é a tentativa de lidar com a terra e com o trabalho de um modo próprio, criado por elas — disse D’Salete. — Políticas que eram excluir essa diversidade (de conhecimentos) é de uma ignorância atroz, que só beneficia quem sempre esteve no poder. É não compreender a nossa história e o conhecimento produtivo dessas comunidades.

Marcela lembrou “Os sertões” e citou semelhanças entre a cultura dos canudenses e dos caiçaras de Paraty.

— Eu achei interessante como o Euclides conta que os sertanejos colocavam pedrinhas de sal para saber se ia chover. Se no dia seguinte a pedrinha tinha derretido era porque ia chover. As comunidades tradicionais também têm esse conhecimento de saber quando a chuva vai chegar, quando o tempo vai virar — disse. — Euclides fala que o sertanejo era mestiço e forte e por três vezes venceu o exército. Aqui também tem mestiços fortes de várias culturas que se conectam. É interessante trazer “Os sertões” para o nosso litoral, porque é a mesma luta, a mesma resistência.

Conflitos políticos no mundo

Ao meio-dia, a nigeriana Ayòbámi Adébáyò e a israelense Ayelet Gundar-Goshen se encontraram na mesa “Angico”. Ayòbámi é autora de “Fique comigo” (HaperCollins), que narra a história de um casamento e tem, como pano de fundo, as turbulências políticas da Nigéria dos anos 1980. Ayelet publicou “Uma noite, Markovitch” (Todavia), que mistura realismo fantástico aos acontecimentos da Segunda Guerra Mundial e da fundação do Estado de Israel.

As autoras se estenderam um pouco sobre os conflitos políticos que seus países atravessam. Ayelet, que é psicóloga, disse que é importante que a literatura questione as narrativa nacionalistas. Ela cresceu ouvido histórias sobre os primeiros anos de Israel e gostava de pensar em como viviam as pessoas comuns naquele tempo, preocupadas mais com suas vidas do que com a história.

— Quando eu era criança, ouvia histórias quase mitológicas sobre a fundação de Israel, mas percebi que alguns fatos não se encaixavam — contou. — O que fazemos com os fatos que não se encaixam? A gente se livra deles para que a narrativa continue funcionando?

Ayelet afirmou ainda que é função da literatura — e também de jornalistas e psicólogos — fazer perguntas incômodas, sobre aqueles assuntos que ninguém quer falar.

Exclusão durante o regime republicano

Depois, do almoço, na mesa “Tróia de Taipa”, o historiador José Murilo de Carvalho deu uma aula sobre Euclides, que ele definiu como um gauche, e sobre o papel dos militares da República brasileira. Carvalho publicou recentemente o livro “Jovita Alves Feitosa: voluntária da pátria, voluntária da morte”, sobre uma jovem piauiense que se disfarçou de homem para lutar na Guerra do Paraguai, e uma nova edição, expandida, de “Forças armadas e política no Brasil” (Todavia).

Carvalho, que é um estudioso dos primórdios da República, lembrou o pecado original do regime republicano brasileiro: excluir o povo. Por causa dessa exclusão, diz ele, logo vieram reações messiânicas, como Canudos. Segundo o historiador, nossa República continuou insistindo no pecado e o grande desafio do Brasil do futuro é incluir o povo eleitoral e socialmente.

— Eu fico pensando como o Brasil de 2050 vai incorporar o povo. Como vamos incorporar os 13 milhões de desempregados, os milhões de subempregados e os que não são mais empregáveis por conta do avanço da tecnologia crescendo 1% ao ano? — questionou. — O que é Canudos hoje? Canudos são esses milhões que nunca foram incorporados e ainda são tratados com canhão.

O historiador também falou sobre o papel dos militares como “tutores” da República. Por desempenharem esse papel, os militares, ao longo da história brasileira, derrubaram governos e entregaram a seus aliados civis. A não ser e 1964, quando deram o golpe e continuaram no poder. Carvalho perguntou como a República brasileira pode se livrar da tutela militar. E ele mesmo respondeu:

— Criando um sistema representativos que não gere crises constantes.

Fascínio pelo poder

A mesa das 17h, “Jeremoabo” discutiu outros conflitos políticos: a falência do chavismo na Venezuela e a ascensão da direita evangélica no Brasil. No palco, a venezuelana Karina Sainz Borgo e o carioca Miguel Del Castillo falaram de seus livros recém-lançados: “Noite em Caracas” e “Cancún” (Companhia das Letras).

Karina, que deixou a Venezuela em 2006 e disse que, deste então, passou por um processo de “desenraizamento” e não reconhece mais o país onde nasceu, atolado em uma complicada crise política. Como tantos outros que conseguiram escapar, ela diz sentir “culpa”

Del Castillo falou sobre a representação evangélica na literatura e na política. “Cancún” é um dos raros retratos da mocidade evangélica na literatura brasileira contemporânea. Perguntado pelo medidor da mesa, o jornalista Guilherme Freitas, sobre a intenção de indicar um ministro “terrivelmente evangélico” para o Supremo Tribunal Federal, Del Castillo respondeu com uma crítica à fome de poder dos religiosos:

– Existe um fascínio pelo poder que me parece muito distante do que o evangelho significa em essência – disse. – Jesus nasceu quase indigente e morreu quase sozinho em uma cruz. Eu não teria problemas com um ministro do STF evangélico ou ateu, mas “terrivelmente evangélico” invoca uma belicosidade que é incompatível com o que Jesus pregava.

Por uma linguagem pós colonial

A mesa das 19h, com a artista interdisciplinar Grada Kilomba, portuguesa descendente de angolanos e são-tomistas, “Mata da Corda”, foi uma das mais aplaudidas. Grada conversou com o escritor e músico angolano Kalaf Epalanga e a antropóloga Lília Moritz Schwarz, que a definiu como uma “grande intérprete do nosso tempo”, que à reflexão sobre gênero, raça, memória e pós-colonialismo.

A mesa foi uma das mais cabeçudas desta Flip. Grada falou, principalmente, sobre processos de descolonização da linguagem e defendeu a interdisciplinaridade e a recusa à especialização.

– Meu trabalho é híbrido – disse. Querer que sejamos leais a um gênero, que sejamos ou só escritores ou só músicos ou só pesquisadores faz parte de um conceito de conhecimento que é colonial, patriarcal, branco e fálico. É um conceito extremamente masculino e que exclui a maior parte. Eu não quero me especializar. Quero um conceito de conhecimento mais circular e redondo, que abarque várias disciplinas. Isso é construir uma linguagem pós-colonial.

Grada também falou sobre a memória, os traumas coloniais e as representações humilhantes, fetichistas e violentas dos corpos negros.

– O trauma colonial é reencenado através do racismo.

Manifesto indígena

A última mesa do dia, “Vaza-Barris”, reuniu o intelectual indígena Ailton Krenak, autor de “Ideias para adiar o fim do mundo” (Companhia das Letras) e o dramaturgo José Celso Martinez Corrêa, do Teatro Oficina.

Krenak começou aluindo ao protesto contra a participação do jornalista Glenn Greenwald na programação paralela da Flip, que acontecia perto da Tenda dos Autores.

— Eu ouvi os fogos e pensei: é muita sorte poder falar de Canudos com essa cenografia toda.

Logo depois, Krenak pintou o rosto de Zé Celso e defendeu a demarcação das terras indígenas. Em outro momento, ele se chamou o protesto contra Greenwald de “manifestação fascista contra a nossa liberdade”.

Zé Celso monopolizou a mesa. Bebeu vinho, falou sobre Oswald de Andrade e da disputa judicial do Teatro Oficina com Silvio Santos, que quer construir arranha-céus no bairro do Bixiga, o que pode comprometer o projeto arquitetônico do teatro. Em um momento, Zé Celso convidou o público para subir ao palco, dar as mãos, dançar e cantar uma música cujo refrão é inspirado em versos de Oswald: "tupi tipo or not tupi".

— A única coisa que eu quero é viver apaixonado. O resto não interessa — afirmou.

O dramaturgo também recorreu a Euclides para fazer comentários políticos.

— É a maior piada quando a USP diz que Antônio Conselheiro é messianismo. Messianismo é o "Messias Bolso", é o mito que micou —- disse, em referência ao presidente Jair Messias Bolsonaro.

Ao fim da mesa, a mediadora Camila Mota pediu que Zé Celso e Krenak recitassem haicais. Uma moça recitou no lugar de Zé Celso. Krenak não disse nada. Uma senhora e uma criança subiram ao palco com uma bandeira vermelha onde se lia "Lula livre".