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Flip: 'Não é pedofilia, é literatura', diz Eliane Moraes sobre livro de Hilda Hilst

Mesa contou também com a leitura da atriz Iara Jamra
Eliane Robert Moraes na Flip Foto: Walter Craveiro / Divulgação
Eliane Robert Moraes na Flip Foto: Walter Craveiro / Divulgação

PARATY - Uma escritora degenerada, ou seja: aquela que está fora de todos os gêneros —literários, sexuais e mesmo o humano. Essa foi a Hilda Hilst que emergiu depois da dissecção apaixonada da ensaísta e professora de literatura brasileira da USP Eliane Robert Moraes na mesa "A santa e a serpente", no começo da noite de sexta, no Auditório da Matriz. Eliane foi aplaudida de pé ao fim de sua exposição, na qual esquadrinhou os vários aspectos da obra da homenageada da Flip 2018 . Em sua travessia pelos mais de 50 anos de atividade de Hilda, a professora contou com o apoio da atriz Iara Jamra (que usou e abusou do humor nas leituras de poesia e prosa) e a mediação pontuada da poeta e editora Alice Sant'Anna.

— Hilda Hilst talvez possa ser considerada uma das mais complexas escritoras brasileiras. Sua obra é impura, ela é lírica e pornográfica, santa e sublime, deslocada por profissão de fé - disse Elaine, que definiu Hilda como "uma escritora sempre em transição", algo que pode ser percebido no seu mui particular uso do gerúndio e das interrogações. - Ela tem essa demanda de absoluto, um desejo de comunicação. Ela quer falar com os mortos, quer falar com Deus. Ele dizia: "Posso blasfemar muito, mas meu negócio é Deus".

Segundo Eliane, a virada dos anos 1960 para os 70 representou o pulo do gato na vida de Hilda —  período em que ela foi morar isolada, na Casa do Sol, e pôde enfim se dedicar integralmente à literatura.

—  Nessa época, ela cai da poesia para prosa, para o prosaico, para o pequeno, para o comezinho da vida humana - observou a professora. - Ela se volta para a matéria, o corpo, o orgânico. Ela fica na gangorra entre a ciência da matéria e a consciência da morte.
Além da sensualidade e do erotismo, a loucura (que Hilda viu de perto, ao cuidar do pai esquizofrênico) também se torna presente na sua obra a partir dos anos 1970, comentou Eliane:

—  Ela queria transformar o sofrimento da loucura em conhecimento. Transformar a loucura, nunca domesticá-la. Os personagens de Hilda são todos loucos. E no tarot, o louco é aquele que vê o avesso das coisas e se torna o portador da verdade.

METAFÍSICA OU' PUTARIA DAS GROSSAS'

O caráter anárquico da língua, para a qual basta um pequeno deslocamento de consoantes para estabelecer reversões de sentido, era de grande agrado de Hilda.

— Ela juntava nomes de filósofos às práticas sexuais mais perversas. Ela embaralhava tudo, juntava o que não estamos acostumados a juntar. Com a Hilda, a metafísica poderia se tornar um putaria das grossas. Havia sempre a ameaça da reversão — apontou Eliane.
Mais para o fim da mesa, veio o grande momento da noite, quando Iara Jamra repetiu o consagrado monólogo que criou em 1999 a partir do livro "O caderno rosa de Lori Lamby", no qual Hilda deu voz a uma menina de oito anos que se prostituía —  e que tirava grande alegria disso.

—  Isso não é pedofilia, é literatura —  defendeu a professora, com grande ênfase. —  Esse livro é perturbador, nos coloca milhares de perguntas, põe em xeque os limites da arte. E o que mais perturba é a alegria de Lori. Este é o único livro alegre de Hilda, o resto é desespero e desamparo. O mundo de Lori Lamby não existe.

Para Eliane, o que Hilda Hilst nos traz com seus livros é a lembrança de que todos temos uma vida secreta, "recaldada, reprimida, mas que está pulsando":

— Ela cria um mundo fora do mundo. Trata-se de conceber o inconcebível.