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Flip: Tragédias atuais no Brasil ganham paralelo com obras clássicas

No primeiro dia de evento foram abordados temas como desastres em Mariana e Brumadinho, além de ameaça às terras indígenas
SC Paraty (RJ) 11/07/2019 - FLIP. Mesa 5 - Kristen Roupenian (cabelos curtos) e Sheila Heti (casaco vermelho). Foto: Leo Martins / Agencia O Globo Foto: Leo Martins / Agência O Globo
SC Paraty (RJ) 11/07/2019 - FLIP. Mesa 5 - Kristen Roupenian (cabelos curtos) e Sheila Heti (casaco vermelho). Foto: Leo Martins / Agencia O Globo Foto: Leo Martins / Agência O Globo

PARATY — "É preciso ler 'Os sertões' todos os dias para entender a perversidade do Brasil com os seus desvalidos". A frase dita pela crítica Walnice Nogueira Galvão na abertura da 17ª Flip ecoou também nas mesas mais animadas desta quinta-feira, 11. No primeiro dia de evento, temas como as tragédias de Mariana e Brumadinho e a ameaça às terras indígenas renderam conexões entre os problemas relatados por Euclides da Cunha (1866-1909), o homenageado da festa, e o de hoje.

Na primeira mesa, "Bendegó", a antropóloga do Museu Nacional Aparecida Vilaça alertou sobre a situação dramática dos povos indígenas no Brasil, cujas terras, segundo ela, passaram a ficar ainda mais ameaçadas sob o governo do presidente Jair Bolsonaro. Segundo ela, mesmo sem mudanças na lei, a simples eleição do político tem incentivado invasões cada vez mais frequentes de terras indígenas.

Em seu livro, "Paletó e eu", Aparecida relembra sua convivência com o povo Warí, que ela foi estudar nos anos 1980 no interior de Rondônia. Lá, ficou tão próxima de um indígena chamado Paletó que acabou sendo adotada por ele como filha, e a quem ela descreve no livro como um pensador e intelectual. Durantes anos, mantiveram contato, inclusive com várias idas de Paletó ao Rio de Janeiro, cidade onde Aparecida reside.

— A sensação é que eles ( indígenas ) viraram alvo novamente. Vivemos um momento de retrocesso absoluto, voltando aos anos 1960 e 1970 — disse a antropóloga, lembrando que o povo Wari foi "dizimado" nos anos 1970. O próprio Paletó teve mulher e filha pequena assassinados a tiros de metralhadora.

Impactos da mineração no país

Na mesa Sincorá, o ensaísta e crítico literário José Miguel Wisnik buscou outro paralelo: os impactos da mineração na vida do país e na obra daquele que é um de nossos maiores poetas, Carlos Drummond de Andrade.

O tema, que está em seu livro "Maquinação do mundo: Drummond e a mineração", ficou ainda mais atual após as tragédias nas cidades mineiras de Mariana e Brumadinho, em 2015 e 2018. Wisnik foi à cidade natal de Drummond, Itabira, e acabou percebendo que a mineração também teve um impacto enorme na formação do futuro poeta. Drummond cresceu em uma casa cujas janelas davam para o Pico do Cauê, que após a mineração na região decresceu de 1385 metros de altura para apenas 150 metros — desaparecendo da vista de Itabira.

— A obra do poeta ganha transformação que eu não imaginava, ligada ao fato de que a devastação da mineração promoveu ao longo da segunda metade do seculo — disse Wisnik. — Se ela passou despercebida dos olhos do brasil, ela transbordou aos nossos olhos com Brumadinho e Mariana. Como dizia Nelson Rodrigues ao comentar o impacto de "Os sertões": "O Brasil só pode se mostrar com uma golfada hedionda".

Mas a devastação não passou despercebida por Drummond. Wisnik selecionou textos do poeta na imprensa em que ele criticava publicamente a Vale do Rio Doce por suas ações em Minas Gerais, e demonstrou como o impacto da atividade aparece em seus versos.

Mesa morna sobre 'Cat person'

Kristen Roupenian na mesa na Flip, em Paraty Foto: Leo Martins / Agência O Globo
Kristen Roupenian na mesa na Flip, em Paraty Foto: Leo Martins / Agência O Globo

A mesa com a americanas Kristen Roupenian e a canadense Sheila Reti foi morna. A primeira falou sobre “Cat person”, sua coletânea de contos cuja história-título viralizou na internet em 2017. A segunda abordou os dilemas de "Maternidade", uma autoficção em que questiona a necessidade de ter filhos. As duas autoras, porém, não conseguiram pontos de diálogo entre suas obras.

— Eu procurava essa pergunta ( sobre a validade de ter filhos ) em livros de filosofia, mas nunca a encontrava — disse Sheila. — Se os homens pudessem engravidar e se coubessem a eles a decisão, essa seria a pergunta fundamental da filosofia desde Platão.

Às 19h, a fotógrafa Maureen Bisilliat participou da mesa “Serra Grande”. Nascida na Inglaterra e radicada no Brasil desde 1957, Maureen subiu no palco de bengala e antes mesmo de se sentar deu um recado ao público:

— Tô mal da perna, mas muito feliz de estar aqui.

Maureen falou sobre sua relação com a literatura brasileira e dos livros que fez a partir das obras de escritores como Guimarães Rosa, Jorge Amado, João Cabral de Mello Neto e Euclides da Cunha. Ela disse que seu interesse pela palavra por autores tão apegados à geografia brasileira é um reflexo de sua criação nômade. Filha de diplomata, ela rodou o mundo antes de se fixar em São Paulo.

— A relação com a palavra começou muito cedo para mim. Aos 5, 6 anos, eu já tinha que conquistá-las, porque viajávamos por muitos países. Eu tinha que tentar pertencer a diversas realidades — afirmou. — Isso me deu uma característica camaleônica que me ajudou muito na fotografia, porque me ensinou a entrar e sair de ambientes. Mas foi difícil.

A última mesa do dia, “Quirinquinquá” reuniu o angolano Kalaf Epalanga e o francês nascido em Burundi Gaël Faye. Ambos transitam entre a literatura e a música, entre a África e a Europa. Epalanda vive entre Lisboa e Berlim e é autor de “Também os brancos sabem dançar”. Faye é rapper e autor do romance “Meu pequeno país”. Vive na França desde 1995, quando a guerra o expulsou de Burundi.

O papo passou por assuntos como identidade, imigração, sentimento de pertencimento e como a relação da música com tudo isso. Epalanga contou que escreveu seu livro depois que o escritor angolano José Eduardo Agualusa sugeriu que ele fizesse uma biografia do kuduru. Segundo Epalanga, as discotecas africanas na Europa são os únicos lugares onde os imigrantes “são indivíduos, recuperam sua dignidade” ao dançar.

As tragédias dos países de origem dos autores – guerras em Angola e Burundi – também apareceram na conversa. Tragédias sociais e históricas, aliás, são um tema recorrente nas mesas da Flip de Euclides da Cunha.

Faye disse que escreveu o livro logo depois do atentado ao jornal satírico “Charlie Hebdo”, em Paris, em janeiro de 2015. Ele percebeu que seus amigos franceses, assustados com o terrorismo, começaram a se interessar mais por suas memórias da guerra no Burundi. Faye quis, então, explicar como a guerra toma a vida das pessoas e escolhei um menino de 11 anos como narrador de seu livro.

— Quis contar como a guerra entra no cotidiano de uma criança — disse. — A guerra não é uma explosão repentina, mas é como uma pintura impressionista que se faz por pequenos toques.