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'Governo italiano ignora máfias', diz Roberto Saviano, autor de 'Gomorra'

'Os meninos de Nápoles' é o primeiro romance do escritor, premiado no Festival de Berlim deste ano
Roberto Saviano (de boné) e sua escolta policial em Nápoles: o apego aos estudos o manteve fora do crime Foto: Divulgação/GIANNI CIPRIANO / NYT
Roberto Saviano (de boné) e sua escolta policial em Nápoles: o apego aos estudos o manteve fora do crime Foto: Divulgação/GIANNI CIPRIANO / NYT

RIO - O trabalho de não ficção trouxe ao jornalista e escritor italiano Roberto Saviano o reconhecimento internacional. Mas também uma escolta policial 24 horas por dia por conta de ameaças de morte de organizações criminosas de seu país, que não gostaram de ver as entranhas da máfia expostas em seu livro “Gomorra” (2006).

Mais de uma década depois, ele continua mexendo no vespeiro, mas em outro registro. Recém-lançado no Brasil, “Os meninos de Nápoles” usa os artifícios da ficção para descrever um clã peculiar da máfia napolitana: as paranzas, grupos de jovens púberes que dividem seus dias entre as redes sociais e o tráfico. Circulando com armamento pesado antes mesmo de completar a maioridade, marcam território para seus chefes adultos.

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É o primeiro romance de Saviano, que optou pela ficção para dar uma dimensão mais ampla — e universal — ao relato dessas adolescências. A história, que conta a passagem para a idade adulta da gangue, acaba de ser adaptada para o cinema (coescrito pelo próprio Saviano, o roteiro do filme homônimo foi premiado com o Urso de Prata no Festival de Berlim, em fevereiro).

Em entrevista por e-mail, o escritor falou sobre as dificuldades enfrentadas pelos jovens de sua Nápoles natal, as suas preocupações com os rumos políticos da Itália e seus atritos recentes com os governantes do país.

O que leva garotos de 10 a 19 anos a ingressar no tráfico?

A vontade de ser como os outros. Poder comprar um par de sapatos, uma jaqueta de grife, poder reservar uma mesa na discoteca da moda onde só se entra se tiver dinheiro. A miséria e a consciência da impossibilidade de mudar sua condição pessoal levam a escolhas radicais.

Como compôs esses personagens? Baseou-se em modelos reais?

Foi um trabalho longo e delicado. Estudei os processos, as interceptações telefônicas, os debates no tribunal. Falei com paranzini e ex- paranzini . O que sempre uso em meu trabalho é um procedimento científico, pois fazer a análise dos autos dos processos significa entrar num mundo desenhado em todos os detalhes, mas que muitas vezes fica relegado ao restrito círculo dos profissionais da área. O desafio é sempre o de pôr a literatura a serviço desses relatos, tirá-los das crônicas policiais para que o leitor possa entender seu alcance universal.

O senhor é nascido e criado em Nápoles. Como era a sua vida com a idade deles?

Cresci no Casertano, reino inconteste de um dos mais ferozes clãs da Camorra, o clã dos Casalesi. Minha experiência de criança e, depois, de adolescente me fez decidir contar o que estamos acostumados a viver em minha terra, achando que, no fim das contas, é normal ceder às organizações criminosas a gestão quase que total do território.

Acredita que, se tivesse nascido na época desses rapazes, o senhor também poderia ter entrado no tráfico?

“As pessoas entram nas organizações porque foram abandonadas, não simplesmente porque se sentem sós”

Roberto Saviano
Escritor

De maneira nenhuma. As pessoas entram nas organizações porque foram abandonadas, não simplesmente porque se sentem sós, mas porque estão objetivamente desprovidas de apoio. Isso não aconteceria comigo, e não porque eu seja melhor, mas porque fui acostumado a procurar no estudo a realização de minhas fantasias, de minhas ambições e aspirações. Hoje, nos bairros mais pobres de Nápoles, duas em três crianças abandonam a escola; e, se não vão à escola, ficam na rua, sem ninguém que possa resgatá-las. O destino de Nápoles é o mesmo de inúmeras outras cidades no mundo, onde existe uma nítida separação entre quem tem meios e oportunidades e quem não os tem e nunca terá.

Quais são as semelhanças e as diferenças entre um jovem de Nápoles e um jovem de uma favela no Rio?

Foi exatamente o que eu quis contar no livro: não há diferença alguma. Embora falando de acontecimentos que se passam em Nápoles, minha intenção era dar uma dimensão mais ampla ao relato dessas adolescências. A pobreza e o desinteresse, a falta de oportunidade e a pressão para ser como os outros, para ser como todos, levam, em certos contextos, garotos muito novos a fazer escolhas de um peso e uma gravidade que não entendem.

Muitos jovens são recrutados para a máfia pelas redes sociais. Como impedir isso?

As redes sociais são totalmente fora de controle, assim como a rua também escapa a qualquer controle. Só depois é que se investiga e se aplicam as penas. Para fazer frente ao recrutamento, que é contínuo e capilar, seria preciso empregar mais recursos no combate e, principalmente, na prevenção.

O senhor leu os livros de Elena Ferrante? O que pensa da Nápoles dela?

É uma Nápoles literária, uma Nápoles universal, um local da alma. Creio que Elena Ferrante, ao narrar Nápoles, também narra o mundo.

‘As máfias são ignoradas pelo governo italiano’

Roberto Saviano não é persona non grata apenas para a máfia italiana. A relação entre o escritor e o homem mais forte do seu país, o vice-primeiro-ministro Matteo Salvini, também vem se mostrando tensa. No ano passado, o líder de extrema-direita ameaçou processar o escritor por difamação e também retirar a escolta policial que protege Saviano da Camorra, grupo criminoso napolitano que o ameaça de morte.

A retaliação foi motivada pelas críticas constantes do autor de “Os meninos de Nápoles” a Salvini. Saviano faz oposição às suas políticas anti-imigração, além de acusar o governante de fazer vista grossa para máfia.

O senhor julga que Salvini o vê como inimigo?

Salvini me vê como inimigo porque, como italiano do Sul, ou melhor, escritor italiano do Sul, continuo a ser uma memória histórica daquilo que a Liga sempre fez no Sul da Itália. E passamos de um partido político que sempre foi racista em relação aos italianos do Sul ( hoje substituídos pelos imigrantes ) para um malogrado afastamento de uma série de políticos que, no Sul, sempre estiveram ligados a ambientes próximos das organizações criminosas.

Sente-se perseguido?

É raro que eu tenha sido simpático à política: nunca agradei, nem nos governos (Silvio) Berlusconi ou (Matteo) Renzi. Na Itália, mas imagino que também em outros lugares, é muito difícil considerar normal que um escritor possa se permitir críticas ao poder. Se ele critica, obstinam-se em repetir, é porque está ganhando alguma coisa. Não sabem nem sequer o quê, mas é o que basta para insinuar a suspeita de que há interesses por trás. Esta é a contribuição do novo governo e da campanha eleitoral que antecedeu sua subida ao poder: tachar qualquer crítica de interessada.

É mais difícil fazer oposição a este governo?

Se na oposição a Berlusconi estava-se sempre do lado do certo, e se na oposição a Renzi estava-se sempre do lado contrário aos ditos “poderes fortes”, na oposição a esse governo que se define como populista e, portanto, como emanação direta da vontade popular, passa-se a fazer parte da elite a ser derrubada.

Como este governo vê a máfia?

Esperando que se compreenda melhor os enormes blefes que são a Liga e o M5S ( os partidos assumiram o país em 2018 após fazer uma coalizão de caráter populista ), não posso me calar sobre o que está acontecendo na Itália: as máfias são completamente ignoradas pelo governo, e isso equivale a favorecê-las. A destruição dos direitos que ocorre em meu país é uma tragédia da qual será difícil nos recuperarmos. Denunciei que, na Campânia ( região que tem Nápoles como capital ), a subsecretária para o Sul, que acolheu triunfalmente Salvini, é próxima de políticos condenados por atividades mafiosas. Salvini diz que a máfia lhe dá nojo... Bom, não parece.

Acha que, no mundo, há conivência entre políticos no poder e grupos criminosos?

Em todo o mundo, as ligações entre grupos de extrema direita e grupos criminosos têm como traço comum a violência. Também é frequente que os integrantes de organizações criminosas tragam votos para as forças políticas mais inescrupulosas.

O senhor está pessimista quanto ao futuro do país?

O que me dá mais medo hoje, não só na Itália, é que parece não existir mais vontade de se aprofundar em nada. Basta-nos uma frase para condenar, formar uma opinião. Mesmo podendo ir a fundo, preferimos patinar na superfície. Temos a sensação de estar perdendo alguma coisa, de não ter tempo para nada, e aí uma postagem no Facebook se torna fonte de informação. Falo do Facebook porque sei que no Brasil há também uma porcentagem crescente de pessoas se informando pelas redes sociais: essa atitude cria danos enormes, mas é tendência que não conseguimos reverter.

“Os meninos de Nápoles”

Autor: Roberto Saviano. Editora: Companhia das Letras. Tradução: Solange Pinheiro. Páginas: 408. Preço: R$ 59,90