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Guel Arraes e Jorge Furtado escrevem peça que imagina bastidores de debate entre Lula e Bolsonaro em 2022

Dois badalados diretores e roteiristas, que discordaram muito nos últimos tempos, misturam política e amor em texto que mostra importância do diálogo sem cancelamento
Jorge Furtado e Guel Arraes são parceiros há 30 anos e começam a rodar a adaptação cinematográfica de 'Grande sertão: Veredas' em novembro Foto: Divulgação / TV GLOBO
Jorge Furtado e Guel Arraes são parceiros há 30 anos e começam a rodar a adaptação cinematográfica de 'Grande sertão: Veredas' em novembro Foto: Divulgação / TV GLOBO

Antes de começar a trabalhar, Guel Arraes e Jorge Furtado sempre debatem as notícias do dia. O hábito acontece desde sempre na parceria profissional entre o pernambucano de 67 anos e o gaúcho, de 62, dois dos mais importantes roteiristas e diretores brasileiros. Já são três décadas dividindo projetos, desde a estreia com "Programa legal", em 1991, até a adaptação para o cinema de "Grande sertão: Veredas", prevista para ser rodada em novembro, no Rio.

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Só que, nos últimos anos, as conversas deles sobre política foram se intensificando na mesma medida em que tomavam conta das mesas de bar do Brasil, provocavam a ruptura de amizades e brigas de família. O exercício do diálogo sem cancelamento motivou Guel e Jorge a escreverem a peça "O debate", recém-lançada em livro pela Editora Cobogó, dentro da coleção Dramaturgia.

A história é ambientada num futuro próximo: outubro de 2022, dia de um suposto debate entre Lula e Jair Bolsonaro no segundo turno das eleições. No terraço de uma emissora, os jornalistas Marcos e Paula se encontram durante pausas no trabalho.

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Entre goles de café e tragos em cigarros, discutem o próprio debate, as eleições, posições políticas, paixões e ideias. Falam, ouvem, discordam, concordam, voltam a discordar. Tudo numa boa. Às vezes, o cabo-de-guerra entre os personagens sobre a função e a ética jornalística soa um tanto simplista: Paula defende o posicionamento político; Marcos, a isenção.

"Democracia é confiar em quem pensa diferente. O que você sugere em troca? Monarquia? Um déspota esclarecido?", pergunta ele. "Você está se escondendo atrás da democracia para não fazer nada", retruca ela. Detalhe: Marcos e Paula são um ex-casal que acaba de se separar após 20 anos de relação. Em meio ao debate profissional, embarcam também numa DR.

— Caetano Veloso já disse que os assuntos mais interessantes são sexo e política. Eu concordo com ele —  brinca Jorge. — E a política se radicalizou tanto no Brasil que virou um assunto pessoal, afetivo. Está complicado se relacionar porque ninguém aceita que o outro pense diferente. Essa mistura do debate político e da afetividade tem uma dramaturgia poderosa. Talvez, nunca haja um debate entre Lula e Bolsonaro, mas a dramaturgia pode criá-lo para nos fazer aprender e pensar.

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o roteirista Jorge Furtado Foto: Divulgação
o roteirista Jorge Furtado Foto: Divulgação

Para Guel, o grande debate da peça é o amoroso. Ele ressalta a capacidade dos personagens de discutirem a própria separação com respeito.

— Eles dão uma lição. Porque o debate de um casal que está se separando, normalmente, é rude, duro, cheio de mágoas, impossível. Ele se escutam. O que estão fazendo no campo amoroso é o que não está acontecendo no campo político — afirma. — Os extremos não estão se falando, além de se xingarem. Não há um debate de ideias entre o campo progressista e a extrema direita. Dá a impressão que os progressistas estão chateadinhos porque entrou um pessoal que não estava previsto.

É bom dizer que a peça não se propõe a criar um diálogo entre dois extremos. Os dois personagens têm visões distintas, pórem, dentro do campo progressista. Assim como Guel e Jorge. O que não impede debates acalorados. Mas o que fica claro ao longo do texto — além do desafio e da importância de se fazer jornalismo em tempos de fake news — é a necessidade da conversa não violenta entre visões diferentes como ferramenta para a reconstrução da sociedade.

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Antes de chegar nesse lugar de respeito mútuo diante das opiniões divergentes, Guel e Jorge quebraram muito o pau, como define o primeiro. Para fazer o livro, tiveram que passar a limpo todos os temas abordados ali em busca de um denominador comum. Embora se reconheçam do mesmo lado politicamente, eles discordaram bastante nos últimos anos.

O diretor Guel Arraes Foto: Divulgação
O diretor Guel Arraes Foto: Divulgação

A forma de enxergar o impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff e a Lava-Jato, por exemplo. Nas últimas eleições, no entanto, os dois até votaram no mesmo candidato. Cravaram Ciro Gomes na urna. Mas foram os dois anos de governo Bolsonaro e sua trágica condução da pandemia que "zeraram o jogo", como diz Guel. Na peça, a noção sobre a importância da vacina é um consenso que serviu para Paula e Marcos relativizarem antigas discordâncias políticas. A pandemia também teve o mesmo efeito sobre Guel e Jorge.

— Nesse momento, a nossa visão começou a se juntar. Ficamos chocados com a politização da pandemia. Chegou uma hora em que sair de casa era direita e ficar, de esquerda — ressalta Guel.

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Mas e agora, diante do cenário atual do país, eles enxergam uma saída? Conseguem ser otimistas?

— Agora, todas as outras questões ficaram para trás, Lava-Jato, corrupção ou não... Zerou tudo, temos que começar de novo, e de um patamar bem abaixo — analisa Guel. —  Lula e Bolsonaro combatem na mesma arena. Por isso, acho que esse é o debate do século.

Jorge concorda.

— Uma senhora me disse uma frase: "O Brasil tem dois políticos que a gente entende o que falam, Lula e Bolsonaro. Os outros dizem muita sigla" — conta. — Acho que teremos que conviver com um Brasil truculento, racista, misógino, homofóbico, machista, tosco. A truculência e a cafajestice estão não só no campo da direita, mas da esquerda também, é um traço nacional. Todos temos responsabilidades numa tragédia desse tamanho. Espero que as pessoas entendam agora que não podem se omitir nesse momento. Uma eleição é sempre uma escolha.

Reprodução da capa do livro 'O debate', assinada por Thiago Lacaz Foto: reprodução
Reprodução da capa do livro 'O debate', assinada por Thiago Lacaz Foto: reprodução

O debate

Autores: Guel Arraes e Jorge Furtado

Número de páginas: 80

Preço: R$ 36,00

Editora: Cobogó