RIO — Nas aterrissagens no aeroporto Santos Dumont é difícil notar a pequena área insular junto à pista de pouso, sobretudo diante da exuberância da Baía de Guanabara e de cartões-postais como o Pão de Açucar e o Cristo Redentor. Mais difícil ainda é imaginar a importância da Ilha de Villegagnon, desde a década de 1930 cedida à Escola Naval, para a fundação da cidade, há 456 anos.
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Ocupada por franceses em 1555, a pequena porção de terra na Baía foi batizada com o nome do almirante Nicolas Durand de Villegagnon, que nela ergueu o Forte Coligny. A vitória das tropas portuguesas comandadas pelo governador-geral Mem de Sá em 1560 e a fundação do Rio, em 1º de março de 1565 , garantiram a presença da ilha e da França Antártica, denominação dada à primeira tentativa de ocupação francesa na América do Sul, nos livros de História.
Recém-lançado, o livro “França Antártica — Ensaios interdisciplinares” traz, em 11 textos, visões de especialistas de várias áreas sobre o evento, transcendendo a narrativa histórica e destacando a sua importância muito além dos limites do Rio ou do Brasil, pela forma como os relatos colhidos no período ajudaram a formar o imaginário europeu a respeito do Novo Mundo.
Entre os escritos abordados nos ensaios, destacam-se os de autoria do franciscano André Thevet e do calvinista Jean de Léry, que, apesar de não terem convivido na ilha fortificada, legaram pontos de vista diferentes sobre a terra e seus habitantes, e personificaram a própria cisão entre católicos e protestantes que colaborou para enfraquecer esta tentativa de ocupação francesa no Brasil.
![Ilustrações do livro "França Antártica", sobre batalha entre portugueses e franceses que deu origem à cidade do Rio Foto: Divulgação](https://ogimg.infoglobo.com.br/in/24902717-ae1-466/FT450A/91763574_SCGravuras-e-ilustracoes-do-livro-Franca-Antartica-sobre-batalha-entre-portugueses-e.jpg)
Organizado pelos acadêmicos Maria Berbara, Sheila Hue e Renato Menezes — que participam depois de amanhã de uma live, às 12h30, no YouTube da Editora da Unicamp, responsável pela publicação — o livro reúne diferentes abordagens sobre a França Antártica, das anotações da música indígena e a descrição de seus instrumentos à iconografia relacionada à América do Sul que se formou a partir da publicação de “As singularidades da França Antártica” (1558), de Thevet, e de “História de uma viagem feita à Terra do Brasil” (1578), de Léry.
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— As imagens e gravuras, criadas por artistas anos depois a partir destes relatos, vão reforçar este imaginário bidimensional desta parte do Novo Mundo, que mistura uma visão de paraíso perdido com a narrativa do “selvagem”, destacando práticas como o canibalismo — observa Maria Berbara. — De certa forma, o impacto que estas descrições geram fazem com que um evento pequeno, do ponto de vista temporal e geográfico, deixe de ter uma importância local para ganhar uma dimensão global, com reflexos sentidos até hoje.
![Capa do livro "França Antártica" Foto: Divulgação](https://ogimg.infoglobo.com.br/in/24902716-1b9-902/FT450A/91792631_SCCapa-do-livro-Franca-Antartica.jpg)
Em seu ensaio, Sheila Hue aborda outro texto, muito menos conhecido, mas que dá uma dimensão de epopeia às batalhas entre portugueses e franceses que antecederam a fundação do Rio. Atribuído a José de Anchieta, o poema épico “Gesta Mem de Sá” tem o último canto dedicado à conquista do forte Coligny, numa visão de uma dupla “missão” religiosa, a da catequização dos indígenas e o enfrentamento aos protestantes que se juntaram a Villegagnon, tidos como hereges:
— Este poema pode ser lido hoje quase como uma peça de propaganda política para Mem de Sá, que obteve vantagens junto à Coroa por conta deste relato épico. O Rio nasce sob esta narrativa grandiosa, que viria a ser retomada no século XIX, mas já dentro de uma mitologia da Independência.
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Renato Menezes observa que a história do Rio já começa marcada por tensões de naturezas diversas, desde os conflitos entre tamoios e temiminós, que seguiram nas batalhas entre os europeus, com as alianças firmadas com franceses ou portugueses. O pesquisador de História da Arte também destaca como as representações da época da França Antártica influenciaram a forma como outros grupos nativos da América do Sul viriam a ser vistos.
— Houve um processo de “tupinização” das representações dos indígenas da região, em um código visual padrão. Era uma redução da diversidade destes povos a um esteriótipo, até literalmente falando, já que estas imagens eram produzidas em gráficas — ressalta Menezes. — Isso, claro, diz muito mais sobre a visão que os Europeus tinham do Novo Mundo do que o que estava sendo relatado.
Serviço
“França Antártica — Ensaios multidisciplinares". Autores: Sheila Hue, Renato Menezes, Maria Berbara . Editora: Unicamp. Páginas: 296. Preço: R$ 66.