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Guimarães Rosa ganha edição especial com toda sua ficção reunida

Meio século após sua morte, autor de ‘Grande sertão: veredas’ guarda baú de segredos

Guimarães Rosa: escritor compulsivo
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Arquivo
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Guimarães Rosa: escritor compulsivo Foto: Arquivo /

RIO - Rio, 16 de novembro de 1967. Depois de adiar sua posse na Academia Brasileira de Letras por quatro anos porque tinha medo de emocionar-se demais e sofrer um mal súbito durante a cerimônia, o médico, escritor e diplomata João Guimarães Rosa finalmente submete-se ao rito da casa para tornar-se um imortal. Em seu discurso, diz que “as pessoas não morrem, ficam encantadas”. Três dias depois, seria vítima de um enfarte fulminante, aos 59 anos. Encantou-se. Para marcar este meio século sem o autor de “Grande sertão: veredas”, a editora Nova Fronteira lança um box com toda sua obra de ficção reunida (R$ 189,90, em pré-venda na Amazon).

ACERVO O GLOBO: A estreia de Guimarães Rosa com ‘Sagarana’

“Ele queria que o leitor se dedicasse a entendê-lo. Ele exigia esse esforço.”

Antônio Callado
Jornalista e escritor

Guimarães Rosa merece. É o tipo do escritor que não pode ser esquecido , embora, nos últimos tempos, pareça meio longe do grande público leitor. Ele escrevia compulsivamente, como prova seu acervo, comprado pelo Instituto de Estudos Brasileiros, da USP, no início dos anos 1970. Assim como os memorandos de Graciliano Ramos (1892-1953) na prefeitura de Palmeira dos Índios, vemos que os despachos de Rosa no Itamaraty contêm textos preciosos, esbanjando estilo. Por essas e por outras — embora rico em diários, cartas e anotações diversas — o acervo ainda teria espaço para guardar os segredos do baú de inéditos de Rosa, que continuam em poder dos herdeiros.

“LIMPAR O APARELHO ATÉ QUE O SANTO BAIXASSE”

Curadora do Fundo João Guimarães Rosa, da USP, a professora Sandra Vasconcelos chama a atenção para a importância de enriquecer o legado do autor.

— Mesmo com todos os esforços, ainda se sabe que há muito a ser descoberto e catalogado sobre a vida e a obra do autor de “Tutameia” — diz Sandra, lembrando que no ano passado foi criado um banco de dados bibliográficos online que hoje conta com 4.680 registros e média mensal de quatro mil visitas. — Nosso papel é facilitar a vida dos leitores em geral.

“Uma das melhores invenções de Rosa foi falar 'nesta outra vida de aquém-túmulo'. ”

Manuel Bandeira
Poeta

Por ora, publicar textos inéditos é uma questão complicada, que depende de acordos entre os herdeiros de Rosa. À parte isso, o leitor só tem a ganhar à medida que conhece mais a fundo a obra e a biografia do escritor que nasceu em Cordisburgo (MG), em 1908, e revolucionou a literatura brasileira.

A facilidade para as línguas estrangeiras o levou à carreira diplomática, depois de ter sido médico em inúmeras cidades de Minas. Essas experiências foram fundamentais para a formação do escritor — cuja obra, por sua vez, foi consolidada durante sua vivência em outros países, como França, Alemanha e Colômbia.

Guimarães Rosa era homem de fé, oficialmente católico, e muito supersticioso. Se por um lado acreditava no poder da oração, tampouco duvidava do sentido místico das coisas. Acreditava na imortalidade da alma, conhecia bem a filosofia hindu, estudava o sobrenatural. Interessou-se por parapsicologia e, segundo o jornalista e amigo Otto Lara Resende (1922-1992), exercitava o controle da mente numa época em que não se falava nisso.

“ A leitura de qualquer página de Guimarães Rosa é um conjuro. ”

Paulo Rónai
Tradutor, crítico e professor

Essas características peculiares influenciavam muito o seu dia a dia. Costumava dizer que, antes de escrever, era preciso “limpar o aparelho até que o santo baixasse”, como se fosse um ritual. Só a partir daí que começava a criar. E gostava de contar, bem-humorado, dois episódios curiosos de quase-morte ocorridos com ele na Alemanha, quando servia como cônsul-adjunto em Hamburgo, durante a Segunda Guerra. Certa vez, numa madrugada, acordou com uma vontade incontrolável de fumar. Vestiu-se, foi à tabacaria e, quando voltou, seu prédio tinha sido devastado por um ataque aéreo. Nenhum vizinho escapou. Vida que segue. Meses depois, conseguiu deixar o consulado brasileiro segundos antes de tudo desmoronar, também por causa de um bombardeio. E foi assim que João Guimarães Rosa quase morreu pela segunda vez.

Estilista obstinado, sempre em busca da frase perfeita e atento ao cotidiano, João Guimarães Rosa foi titular de uma coluna no GLOBO. O mineiro assinou 34 textos entre 7 de janeiro e 26 de agosto de 1961. Ele costumava comentar, a respeito das suas colaborações na coluna “Guimarães Rosa conta”, que as limitações de espaço e de tempo típicas do trabalho jornalístico eram benéficas para o exercício da escrita.

Foi nas páginas do GLOBO que Rosa publicou, pela primeira vez, um de seus contos mais famosos, “A terceira margem do rio” (veja ao lado a reprodução fac-símile). Trata-se da história de um homem que resolve se isolar do mundo e, para isso, vai viver numa canoa no meio do rio — que seria, então, a tal terceira margem.

O conto acabou publicado no livro “Primeiras estórias”, de 1962, e ganhou também uma versão para o cinema, assinada por Nelson Pereira dos Santos, em 1994.

É curioso que, apesar de a obra de Rosa ser tão intimamente ligada à palavra, ela cabe muito bem no cinema por tratar primordialmente de dramas humanos. Vêm daí as adaptações para cinema ou TV de “Grande sertão: veredas” e “A hora e a vez de Augusto Matraga”, além de “Outras estórias”, em que Pedro Bial adaptou cinco contos do livro “Primeiras estórias”.

Conto de Guimarães Rosa publicado na página literária do Globo: "A terceira Margem do Rio" Foto: Reprodução
Conto de Guimarães Rosa publicado na página literária do Globo: "A terceira Margem do Rio" Foto: Reprodução

Todas as colunas de Guimarães Rosa no GLOBO foram publicadas em livros: 12 em “Primeiras estórias”, três em “Tutameia” (1967) e 19 em “Ave Palavra” (1970), incluindo 18 poemas assinados com os pseudônimos anagramáticos: Soares Guiamar, Meuriss Aragão (ambos anagramas de Guimarães Rosa) e Sá Araújo Ségrim (anagrama de J. Guimarães Rosa).

A obra do escritor mineiro virou até música. Em 1968, a atriz e cantora Dulce Nunes gravou o LP “O samba do escritor”, um disco de “musicopoesia”, registrando 12 composições próprias em parceria com escritores como Jorge Amado, Mário Quintana, Guimarães Rosa, entre outros. O disco contou com a participação de Nara Leão, Edu Lobo, Gracinha Leporace, Joyce e o conjunto vocal Momento Quatro, além de arranjos de Luiz Eça, Oscar Castro Neves e a estreia de Egberto Gismonti como arranjador e instrumentista.

As parcerias com Guimarães Rosa são “Adamubies”, “Ou Ou” e “O aloprado”. Na capa, aparecem com Dulce, Vinicius de Moraes, Millôr Fernandes e Carlos Drummond de Andrade.