Exclusivo para Assinantes
Cultura Livros

Hilda Hilst comenta, com humor, política e atualidades em crônicas

Textos reunidos em novo livro foram publicados entre 1992 e 1995 em jornal de Campinas
A escritora Hilda Hilst em foto de 1998 Foto: Roberto de Biasi / Agência Estado
A escritora Hilda Hilst em foto de 1998 Foto: Roberto de Biasi / Agência Estado

RIO — Uma Hilda íntima, que proseia como se estivesse conversando lado a lado com o leitor. É essa escritora que aparece no recém-lançado “132 crônicas: Cascos & carícias e outros escritos”, a mais completa reunião dos seus textos publicados entre 1992 e 1995 no jornal “Correio Popular”, de Campinas.

FLIP: Lado místico de Hilda Hilst, como conversas com espíritos, terá destaquea

“Hilda era assim, falava daquele jeito que está nas crônicas. De alguma forma acabou inserindo isso no jornal. Lendo esses textos, parece que estou aqui batendo perna com ela.”

Gutemberg Medeiros
Jornalista e pesquisador

Em suas crônicas, a autora comenta as notícias da época, fala sobre política e atualidades, mas sem deixar de lado as divagações metafísicas e o humor desbocado. Reclusa em sua Casa do Sol, ela observava à distância os acontecimentos mundanos, com o mesmo olhar enfeitiçador de seus romances e poemas.

CRÔNICA: Em texto de 1994, escritora reflete sobre abismo social

— Hilda era assim, falava daquele jeito que está nas crônicas — diz o jornalista e pesquisador Gutemberg Medeiros, que conviveu anos com a escritora. — De alguma forma acabou inserindo isso no jornal. Lendo esses textos, parece que estou aqui batendo perna com ela.

Até hoje, a obra de Hilda tem fama de difícil e hermética. Assim como o resto de sua prosa, as crônicas também são diferentes de qualquer coisa que já se leu no gênero. A autora desmonta os códigos, alternando o registro impressionista banal com monólogos interiores intensos. Muda o raciocínio como quem faz uma curva a cem por hora, pisando ao mesmo tempo no freio e no acelerador. Não raro, contrabandeava versos dentro dos textos, misturando poesia e prosa.

TEXTOS CAUSARAM REVOLTA EM CAMPINAS

Apesar do seu estilo labiríntico, os textos ainda são o que há de mais acessível em seu trabalho. Não por acaso, serviram de porta de entrada para muitos de seus leitores nos anos 1990. E também causaram indignação entre os moradores de Campinas. A própria autora reporta a repercussão das crônicas entre os leitores do “Correio Popular”. “Essa modesta articulista que sou eu escreveu textos e poemas belíssimos e compreensíveis, e tão poucos leram ou compraram meus livros... Mas agora com essas crônicas... que diferença! Como telefonam indignados para o por isso eufórico editor deste caderno, dizendo que sou nojenta!”.

— Eu tenho uma experiência muito pessoal, de leitora, com uns 15 anos, que era quando eu lia as crônicas de Hilda no “Correio Popular” — recorda Ana Lima Cecílio, uma das biógrafas da escritora. — Era sempre uma surpresa, porque às vezes ela tinha uns ataques meio amalucados “contra tudo que está aí”, e às vezes fazia uns contrabandos poéticos e enfiava uns poemas.

“Se quiserem me chatear seriamente é só começar a falar de política & negócios”, escrevia a cronista. Com horror a “partidos rótulos seitas igrejinhas”, Hilda mostrava absoluto desrespeito a instituições, figuras públicas e, como ela mesmo dizia, “otôridades”.

“Aconteceu uma coisa muito interessante com as crônicas. Quando eu as lia 15 anos atrás, me pareciam datadas. Porque falavam de um Brasil destruído. Nos últimos dois anos, em que o país regrediu tanto, me parece que voltaram a ser atuais.”

Daniel Fuentes
Herdeiro e administrador da obra de Hilda

Foi o caso do então presidente Itamar Franco, por exemplo. No infame episódio da foto com uma Lilian Ramos sem calcinha no carnaval, ela escreve: “Não é que o presidente também sente? Eu pensava que presidente não tem tesão por nem pena de ninguém. Tá todo mundo esperando que o mundo se acabe no barranco para morrer encostado, como dizia minha falecida amiga e cozinheira Clementina”.

Nem sempre esse tom iconoclasta pegava bem. Mas Hilda, que gostava de chamar seus leitores de “fofos” e “fofadas”, não parecia se importar muito com as críticas às crônicas, acredita Ana Lima.

— Ela gostava do barulho mesmo — diz a biógrafa. — Também não acho que ela mesma considerasse as crônicas como uma parte importante da obra mas isso aí já palpite meu.

Retrato amargo dos anos Collor e Itamar, os textos relembram momentos tristes do país, como a chacina da Candelária (tema que volta seguidas vezes), o abismo econômico e os desmandos políticos. Em um momento de crise, quando tudo parecia sem rumo, a cronista vê o deboche e a farra dionisíaca como única saída: “ Vamo brincar que o Brasil deu certo e que todo mundo tá mijando a céu aberto, num festival de povão e dotô ?”, escreve.

— Aconteceu uma coisa muito interessante com as crônicas — comenta Daniel Fuentes, herdeiro e administrador da obra de Hilda. — Quando eu as lia 15 anos atrás, me pareciam datadas. Porque falavam de um Brasil destruído. Nos últimos dois anos, em que o país regrediu tanto, me parece que voltaram a ser atuais.