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Inéditos de Anne Frank incluem até romance inacabado

Autora do mais célebre diário do século XX, que faria 90 anos nesta quarta, tem cartas, contos, versos e até trecho do livro apresentados em 'Obra reunida'
Anne Frank aos 5 anos, tomando sol Foto: Divulgação
Anne Frank aos 5 anos, tomando sol Foto: Divulgação

SÃO PAULO — Antes mesmo de ser presenteada com um diário em seu 13º aniversário, no dia 12 de junho de 1942, Anne Frank já gostava de escrever. Ela rabiscava versinhos, às vezes nos cadernos de suas colegas de escola, e se correspondia com sua avó desde 1936. Nas cartas, Anne comentava de assuntos adolescentes — meninos, visitas ao dentista, a bicicleta, a mochila e o vestido que ganhou dos pais —às carências trazidas pela guerra.

Anne também escrevia contos, anotava suas citações favoritas em num caderno e esboçou um romance, “A vida de Cady”. Todos esses escritos — os versinhos, as cartas, o romance inacabado, os contos — e outros, como as três versões do diário e punhado de anotações sobre faraós e o Antigo Egito que ela redigiu para um trabalho escolar, compõem sua “Obra reunida” que a Record publica por aqui em novembro. Os “Contos do esconderijo” apareceram em português em 1984, mas boa parte das cartas, das fotografias, dos textos críticos inclusos na “Obra reunida” são inéditos para o público brasileiro — tudo traduzido direto do holandês por Cristiano Zwiesele do Amaral.

'Livro do Egito', com impressões de Anne sobre os faraós; organizadores da 'Obra reunida' acham que pode se tratar de um trabalhar escolar Foto: Reprodução
'Livro do Egito', com impressões de Anne sobre os faraós; organizadores da 'Obra reunida' acham que pode se tratar de um trabalhar escolar Foto: Reprodução

— Os textos da “Obra reunida”, mesmo os inéditos, não pintam uma nova Anne Frank, mas revelam algumas coisas sobre o contexto em que ela viveu. Por exemplo: ela vinha de uma família letrada, o que podemos saber pelas cartas que trocava com a avó, falando da vida e da escola. Vários trechos do diário são cartas a uma menina chamada Kitty — disse Yves Kugelman, da Fundação Anne Frank, que falou ao telefone com O GLOBO no intervalo de uma comemoração dos 90 anos de Anne, celebrados hoje. — Além disso, as fotos e os textos contam muito da história da família Frank e da cultura e tradição em que Anne foi criada.

Obra traz as três versões do 'Diário'

A “Obra reunida” traz três versões do diário, conhecidas como versão A, B e C. A versão A são os relatos escritos por Anne enquanto se escondia, junto com a família, nos fundos de um prédio em Amsterdã, na Holanda ocupada pelo nazismo. A versão B foi reescrita pela própria Anne depois que Gerrit Bolkestein, ministro da Educação exilado em Londres, foi ao rádio conclamar a população a guardar documentos sobre a guerra. Anne entendeu o recado e editou seu diário: reescreveu trechos, incluiu outros e alterou nome e referências.

Anne Frank, à direita, com a irmã Margot, em 1933 Foto: Reprodução
Anne Frank, à direita, com a irmã Margot, em 1933 Foto: Reprodução

A versão C é o diário de Anne que ficou conhecido, editado em 1947 por Otto Frank, pai de Anne e único membro da família a sobreviver ao Holocausto — sua mulher, Edith, morreu em Auschwitz; Anne e a irmã, Margot, no campo de concentração de Bergen-Belsen, em fevereiro de 1945. Otto censurou passagens em que a menina narrava o despertar de sua sexualidade — esses trechos foram, depois, reincorporados ao diário.  O sucesso do livro começou em 1952, quando foi publicado nos Estados Unidos pela prestigiosa editora Doubleday com um prefácio da ex-primeira-dama Eleanor Roosevelt. A história de Anne logo seguiu para a Broadway (1955) e para Hollywood (1959). “O diário de Anne Frank” foi traduzido para mais de 60 idiomas. Estima-se que mais de 30 milhões de cópias foram vendidas ao redor do mundo, mas Kugelman afirma que ninguém sabe ao certo “assim como ninguém sabe quantas Bíblias já foram vendidas”.

Carta enviada por Anne Frank à avó Alice, em 1936: 'Querida Omi, desejo-lhe tudo de bom no seu aniversário. Como vão o Stephan e o Bernd? Agradeço a tia Leni pelo lindo boneco de esqui, você ganhou bons presentes de aniversário? Escreva-me, um beijinho, Anne' Foto: Reprodução
Carta enviada por Anne Frank à avó Alice, em 1936: 'Querida Omi, desejo-lhe tudo de bom no seu aniversário. Como vão o Stephan e o Bernd? Agradeço a tia Leni pelo lindo boneco de esqui, você ganhou bons presentes de aniversário? Escreva-me, um beijinho, Anne' Foto: Reprodução

No Brasil, “O diário de Anne Frank” é editado pela Record desde 1976 e vendeu mais de um milhão de exemplares. Quase metade deles depois de 2014, quando a editora publicou uma edição de luxo do “Diário” e uma graphic novel roteirizada por Ari Folman e ilustrada por David Polonsky .

Nova geração de leitores

“A culpa é das estrelas”, romance juvenil de John Green publicado em 2012 e adaptado para o cinema em 2014, ajudou a apresentar Anne a uma nova geração de leitores e catapultar o “Diário” de volta às listas de mais vendidos. Hazel e Augustus, os protagonistas do livro, visitam a Casa de Anne Frank, em Amsterdã.

A booktuber Bel Rodrigues, de 25 anos, fez o caminho inverso: leu “A culpa é das estrelas” porque sabia das referências ao “Diário”, que é seu livro favorito. Bel leu três vezes o “Diário” — a primeira vez aos 12 anos —e duas a graphic novel. Em seu canal no YouTube, ela já publicou sete vídeos sobre Anne Frank. Juntos, eles já foram assistidos mais de 630 mil vezes.

Bel percebe, nos comentários de seus vídeos e nos eventos de que participa, que uma nova geração de leitores, alguns com idade próxima à de Anne quando começou a escrever, têm se encantado pelo diário.

— Gente de 13, 14 anos está lendo Anne Frank. Ela continua despertando interesse porque é uma história incrível. Ela estava se escondendo dos nazistas, mas não é um livro 100% triste. Ela tinha dilemas de garota, como menstruação, gostar de meninos, querer ficar acordada até mais tarde — disse Bel. — Fico honrada quando me dizem que leram “Diário” ou a graphic novel depois de assistir aos meus vídeos. É muito bom quando as pessoas vê agradecer e me dizem que esse foi o melhor livro que já leram.

Bel está ansiosa pela publicação da “Obra reunida” e promete vídeos:

— Com certeza vou falar dos inéditos no canal. Não tenho dúvida disso.

Trecho do romance inacabado de Anne Frank, 'A vida de Cady'

Quando a Cady abriu os olhos, o primeiro que viu foi que, à sua volta, tudo estava branco. Por último, o que soube com mais clareza é que alguém a chamava... um carro, após o que ela caiu... até que tudo escureceu. Estava também com uma dor aguda na perna direita e no braço esquerdo e, sem dar-se conta, gemia baixinho. Logo em seguida se curvou sobre ela um rosto amável, que a olhava por sob um capuz branco.

“Você está sentindo dor, minha pobre menina? Você se lembra de algo do que aconteceu com você?”, perguntou a irmã.

“Não é nada...”

A irmã sorriu. Então a Cady prosseguiu, falando com dificuldade: “Sim... foi um carro... eu caí... e só!”

“Pelo menos me diga como você se chama para que possamos contatar os seus pais e eles não fiquem apreensivos!”

A Cady ficou visivelmente assustada: “Mas... é que...”. Mais ela não conseguiu dizer.

“Não tenha medo, não faz muito tempo que os seus pais esperam, você está aqui conosco não faz nem uma hora”.

No rosto da Cady apareceu, embora com dificuldade, o esboço de um sorriso. “Eu me chamo Caroline Dorothea van Altenhoven, mas me chamam de Cady, e vivo na Zuider Amstellaan 261".

“Está com saudade dos seus pais?”

A Cady fez apenas que sim. Estava cansada, e tudo doía; deu mais um suspiro e adormeceu.

Carta de 13 de janeiro de 1941 a Alice Frank e a família Elias na Basileia

Meus queridos,

Recebi hoje a carta do Bernd, adorei que ele tenha escrito para nós, então muito obrigada.

Eu passo cada minuto do meu tempo livre no rinque de patinação. Até agora estava usando sempre os patins que a Margot tinha usado. Eles têm uns parafusos que se ajustam com uma chavinha. Já as minhas amigas têm para o rinque patins de verdade, que usam pregos para ajustá-los nos pés e impedem que eles se soltem.

Estava morrendo de vontade de comprar também esses patins e, depois de muito reclamar, acabei ganhando.

Eu estou tendo regularmente aulas de patinação artística: aprendo a dançar, saltar e tudo o mais.

Dei para a Hanneli os meus patins velhos, e ela está toda contente. Assim, estamos as duas satisfeitas.

A irmãzinha dela é uma graça. Eles me deixam pegá-la nos braços; ela ri para todo o mundo, e as crianças morrem de inveja da Hanneli por causa da Gabi.

Como vão vocês? Eu só estou falando de mim e da patinação, mas não me levem a mal, é que eu estou toda prosa com ela.

Espero que eu aprenda a patinar como o Bernd.

Por aqui vai tudo bem (me refiro à escola), eu tenho pouco tempo durante a semana, com exceção de quando estou no rinque.

Às terças e sextas eu também tenho lição de casa e, para patinar, só me sobram os sábados e os domingos.

Às segundas, quartas e quintas tenho francês e chego a casa só quase às seis.

Bernd: quem sabe a gente não faz uma apresentação juntos mais para frente, mas eu tenho que praticar ainda muito para alcançar você.

Lembranças a todos e muitos beijinhos,

A sua Anne