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Javier Cercas se reinventa em romance policial e explica por que é contra a independência da Catalunha

Autor, que volta à ficção em "Terra alta", fala sobre viver em atmosfera polarizada e diz que um escritor covarde precisa mudar de profissão
Spanish writer Javier Cercas poses during the presentation of his new book "Independencia" in Barcelona on March 03, 2021. (Photo by LLUIS GENE / AFP) Foto: LLUIS GENE / Agência O Globo
Spanish writer Javier Cercas poses during the presentation of his new book "Independencia" in Barcelona on March 03, 2021. (Photo by LLUIS GENE / AFP) Foto: LLUIS GENE / Agência O Globo

Depois de botar o ponto final em “O rei das sombras” , romance no qual questiona o que levou seu tio-avô a se alistar no exército fascista de Francisco Franco, o escritor espanhol Javier Cercas percebeu que precisava desesperadamente se reinventar. Se continuasse lançando romances sem ficção no qual um escritor chamado Javier Cercas (e muito parecido com ele) cutuca as feridas do passado espanhol, começaria a se repetir. Como escritor, estaria morto. Para escapar da morte literária, aposentou o narrador em primeira pessoa e voltou à “ficção pura”, abandonada desde “Soldados de Salamina” (2001). Arrumou um protagonista misterioso e violento e depois decidiu que ele era o policial que matou os quatro terroristas responsáveis pelo atentado em Cambrils, na Catalunha, em 2017.

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Até hoje, a identidade dos policiais envolvidos na ação é desconhecida. Para Cercas, porém, ele é Melchor Marín, jovem policial destacado para investigar um assassinato bárbaro na Terra Alta, numa Catalunha convulsionada pelo separatismo. O escritor se afeiçoou tanto a Melchor que decidiu torná-lo protagonista de uma tetralogia policial, cujo primeiro volume, “Terra Alta”, acaba de sair no Brasil.

Nascido na Extremadura, próxima à fronteira portuguesa, e criado na Catalunha, Cercas é contrário à independência da região, proclamada unilateralmente em 2017. Em entrevista ao GLOBO, Javier Cercas explica por que se opõe ao separatismo catalão e conta o que aprendeu depois de duas décadas escrevendo sobre os heróis esquecidos da história espanhola e da própria família.

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“Terra Alta” é diferente dos seus livros anteriores: não é narrado em primeira pessoa, não há um personagem chamado Javier Cercas nem uma reflexão filosófica sobre o passado espanhol. O que o levou a tentar se reinventar nesse romance?

“O rei das sombras” representou o fim de um caminho que eu trilhava há 20 anos, desde “Soldados de Salamina”. Com meus romances de não ficção, que mesclam gêneros literários e têm um narrador muito próximo de mim, fiquei conhecido no mundo todo, ganhei prêmios, dinheiro e leitores, mas, se eu insistisse nesse caminho, correria o maior dos perigos para um escritor: repetir-se, tornar-se um imitador de si mesmo. Um escritor sem nada de novo a dizer está morto. E eu não quero morrer. Preferir correr o risco de me reinventar. Como homem, sou razoavelmente covarde, mas como escritor não posso sê-lo. Um escritor covarde é como um toureiro covarde. É melhor mudar de profissão.

Por que inspirou Melchor Marín, o protagonista de “Terra Alta”, no episódio da morte dos quatro terroristas em Cambrils, em 2017?

Primeiro, me ocorreu a frase que abre o segundo capítulo: “Seu nome era Melchor porque, da primeira vez que o viu, recém-nascido de seu ventre e ainda ensanguentado, sua mãe exclamou entre soluços de alegria que ele parecia um rei mago”. Melchor me apareceu como um jovem obscuro, violento, cheio de dor e de fúria. Como os temas do romance são a vingança e a justiça, percebi que o policial que matou os terroristas e que ninguém sabe quem é só podia ser Melchor Marín. E para mim ele é.

Todos os seus livros, desde “Soldados de Salamina”, investigam o que é um herói. Depois de tanto tempo escrevendo sobre o assunto, já tem uma definição de herói?

Quando tiver, paro de escrever. Mas sei algumas coisas. Primeiro: os heróis são pouquíssimos e nunca se reconhecem como heróis. São anônimos. Dizer que um herói é anônimo é um pleonasmo. Só os falsos heróis se proclamam heróis. Os heróis são corajosos. Segundo Winston Churchill, a coragem é a virtude que torna todas possíveis. O herói é como o homem revoltado de (Albert) Camus : é capaz de dizer não quando todos dizem sim. Por ter a coragem de dizer não, de dizer a verdade, torna-se inimigo do povo. Para os heróis, não há prêmio.

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Melchor se rebela contra a “existência sórdida” para a qual sua mãe o destinou. O Javier Cercas de “O rei das sombras” afirma que se tonara escritor para que seu destino não fosse escrito pela mãe. Para ser um herói, é preciso contrariar a mãe?

Não me lembrava disso! Uma das poucas verdades absolutas em que acredito é que uma metade do livro é feita pelo escritor e outra pelo leitor. O Javier Cercas de “O rei das sombras” tenta se rebelar contra a mãe, mas no fim faz o que ela queria: preserva a memória do tio. O que nossos pais nos dizem é tão importante quanto lutar contra eles para forjar nosso próprio destino. Ainda que acabemos forjando precisamente o destino que eles queriam para nós.

Em vez das investigações sobre o passado, “Terra Alta” fala de questões do presente espanhol, como ataques terroristas e a independência da Catalunha. O seu interesse migrou do passado para a o presente?

Meus livros eram um protesto contra a ditadura do presente. Em “Terra Alta”, o presente importa mais. Paradoxalmente, o narrador em terceira pessoa, frio e distante, e o retorno à “ficção pura” me permitiram abordar alguns assuntos com mais profundidade. A crise catalã de 2017 não é o tema, mas foi o combustível desse romance. Ao mesmo tempo em que eu precisava me reinventar como escritor, a sociedade catalã de partiu ao meio, passamos a viver numa atmosfera pré-bélica que transformou nossas vidas por completo. O que alimenta os escritores é a crise, a dor, o mal. Somos necrófagos. Os melhores de nós transformam lixo em ouro.

Geralmente, imagina-se que os intelectuais estão sempre à esquerda e apoiam a luta dos povos por autodeterminação. Você, porém, é contrário à independência da Catalunha.

Eu sou de esquerda. O movimento independentista é que não é. Ele se apresenta como um movimento progressista e solidário, mas é reacionário e egoísta. São ricos que querem se separar dos pobres. Catalães exercem seu direito à autodeterminação ao elegermos nossos representantes. O direito à secessão só é reconhecido quando há guerra ou violação de direitos humanos, o que não é o caso. Como escritor, como pessoa que pensa, não posso ser cúmplice do que a meu ver é problemático. Quando eu era jovem, abominava a figura do escritor politicamente comprometido. Mas é isso que eu sou hoje, com quase 60 anos, embora deteste sê-lo. É um papel terrivelmente incômodo que desempenho como posso. Um personagem de “Soldados de Salamina” diz que civilizado é o país em que as pessoas não precisam se preocupar com a política. Nem sempre gozamos desse privilégio.

Capa de "Terra Alta", novo romance do escritor espanhol Javier Cercas Foto: Divulgação
Capa de "Terra Alta", novo romance do escritor espanhol Javier Cercas Foto: Divulgação

“Terra alta”


Autor: Javier Cercas. Editora: Tusquets. Tradução: Mariana Marcoantonio. Páginas: 308. Preço: R$ 66,90.