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J.M.Coetzee comenta autores clássicos e menos conhecidos em ensaios

Flaubert, Tolstói, Beckett, Celan, Musil e outros são temas de textos reunidos em duas coletâneas recém-publicadas
Foto: Tiziana Fabi
Foto: Tiziana Fabi

Além de autor de romances celebrados como “Desonra” e “Diário de um ano ruim”, o Nobel de Literatura J. M. Coetzee é também um ensaísta de grande inteligência, como mostram os dois volumes recentemente lançados: “Mecanismos internos”, com ensaios escritos entre 2000 e 2005 (teve edição pela Companhia das Letras em 2011), e “Ensaios recentes”, inédito no Brasil, com textos do período de 2006 a 2017.

A variedade de obras e autores comentados por Coetzee em seus ensaios chama a atenção, assim como o caráter minucioso de seu olhar crítico. O autor percorre desde autores clássicos e conhecidos como Flaubert , Tolstói e Goethe até figuras menos conhecidas do século XX, como Patrick White e Les Murray (ambos australianos), além de Ford Madox Ford, Gerald Murnane e Juan Ramón Jiménez.

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Nascido na Cidade do Cabo, África do Sul, em uma família descendente de boêres (holandeses que chegaram no século XVII, dando origem ao africâner, idioma dos brancos no país), Coetzee desde cedo teve contato com diferentes línguas e culturas, algo que se intensificou com suas mudanças ao longo dos anos (Inglaterra, Estados Unidos, Austrália). A familiaridade com o alemão, por exemplo, é fundamental para a riqueza de alguns ensaios, como aqueles sobre Musil, Celan e Joseph Roth (em “Mecanismos internos”), ou sobre Hölderlin, Heinrich von Kleist e Robert Walser (em “Ensaios recentes”).

Reunido em “Ensaios recentes”, o texto sobre Ramón Jiménez é um bom exemplo do modo como Coetzee relê intensivamente uma poética alheia e, ao mesmo tempo, encontra espaço para refletir sobre suas próprias questões: ele analisa “Platero e eu”, publicado em Madri 1917, poema em prosa sobre “vida e época” de um asno e sua relação com seu companheiro humano. A produção de Coetzee é marcada, desde o início, por uma permanente atenção ao destino dos animais em nossa sociedade — como testemunha o volume “A vida dos animais”, publicado em 1999.

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Muitos dos textos reunidos em “Ensaios recentes” foram, originalmente, introduções para reedições dos livros em questão. Por conta disso, Coetzee não apenas contextualiza as tramas e os autores, mas aprofunda alguns pontos acerca da realização técnica dos romances: a relação entre o que é dito e o que não é dito, mas insinuado (como no ensaio sobre Nathaniel Hawthorne); a relação entre os gêneros e as possibilidades de mesclá-los (como no ensaio sobre o romance em Samuel Beckett); as tensões entre um estilo prolixo e um estilo conciso (ensaio sobre Heinrich von Kleist); a necessidade de explorar perspectivas surpreendentes ao lidar com temas já utilizados em outros livros (ensaio sobre Robert Walser).

Muitas vezes Coetzee também reivindica uma mudança de foco na crítica. “A atitude descuidada e até amoral de Zama diante dos próprios impulsos de violência levou alguns leitores a compará-lo ao Meursault do romance ‘O estrangeiro’, de Albert Camus”, escreve ele no ensaio dedicado ao escritor argentino Antonio di Benedetto (1922-1986). “A comparação”, no entanto, “não rende muito”: “mais importante que Camus é a influência de Jorge Luis Borges, contemporâneo mais velho de Di Benedetto”, escreve Coetzee, acrescentando ainda à equação “Freud, Joyce, Faulkner e os existencialistas franceses”.

Esse impulso de transformação da perspectiva diante de um texto literário se encontra em todos os ensaios de Coetzee, com graus variados de intensidade. Trata-se, sem dúvida, de um dos ingredientes fundamentais da relevância de Coetzee e de sua posição intelectual na atualidade: deslocar a zona de conforto estética de seus contemporâneos — e daqueles que ainda virão.

*Kelvin Falcão Klein é professor da Escola de Letras da UniRio

Serviço

“Ensaios recentes”

Autor : J.M.Coetzee. Editora : Carambaia. Tradução: Sergio Flaksman. Páginas: 352. Preço: R$ 87,90. Cotação: Ótimo

“Mecanismos internos”

Autor: J.M.Coetzee Editora: Carambaia. Tradução: Sergio Flaksman. Páginas: 384. Preço: R$89,90. Cotação: Ótimo