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João Cabral de Melo Neto ganha fotobiografia com poema inédito

Livro traz imagens do autor pernambucano, incluindo manuscritos de versos nunca publicados
João Cabral de Melo Neto e sua esposa, Stella Maria, em uma tourada em Barcelona (1950): paixão do poeta pela tauromaquia surgiu nos primeiros anos na cidade espanhola. Foto: Mateo Fotos/Acervo da Família/Verso Brasil Editora
João Cabral de Melo Neto e sua esposa, Stella Maria, em uma tourada em Barcelona (1950): paixão do poeta pela tauromaquia surgiu nos primeiros anos na cidade espanhola. Foto: Mateo Fotos/Acervo da Família/Verso Brasil Editora

RIO —  Em uma entrevista publicada no “Caderno de Literatura Brasileira”, em 1996, João Cabral de Melo Neto mencionou a intenção de escrever um poema que falasse sobre as diferenças entre o boi de coice e o boi de cambão. “Os bois de cambão são os que puxam o carro, os de coice são os que o freiam, quando ele está descendo uma ladeira”, explicou ele .

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A ideia, na verdade, era fazer uma analogia para diferenciar os estilos de escritores. Para ele, Manuel Bandeira seria um boi de cambão, por exemplo, e Augusto Frederico Schmidt um de coice. Vinte e cinco anos depois, um esboço deste poema, que nunca havia sido publicado em antologia alguma, aparece pela primeira vez em “Fotobiografia de João Cabral de Melo Neto” (Verso Brasil). O livro reproduz mais de 500 imagens relacionadas ao autor pernambucano, desde polaroides familiares a fotos de suas andanças pelo mundo, passando por documentos diplomáticos, listas deixadas por ele e diversos manuscritos — como o rascunho dos inacabados versos de “Boi de coice boi de cambão”.

O lançamento acontece na próxima quinta-feira, a partir das 19h, em um evento virtual com transmissão pelo canal no YouTube da Travessa . Está previsto um bate-papo entre o poeta Eucanaã Ferraz, organizador do livro, e a editora Valéria Lamego, da Verso Brasil, com mediação da crítica Célia Pedrosa, professora da PUC-Rio.

— Os rascunhos do estudo para o poema estavam junto com as caixas de fotos guardadas pela família — diz Valéria. — Esta é a primeira fotobiografia já feita sobre Cabral, e é interessante que seja acompanhada deste manuscrito que inauguraria um tema novo em sua obra, os carros de boi. É um núcleo temático que ele começou a trabalhar e não levou adiante. Tanto que na entrevista ele compara os carros de boi com escritores e, no rascunho, isso não aparece.

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A princípio, uma fotobiografia de João Cabral de Melo Neto pode ser vista como uma contradição. Em uma carta ao seu editor, o poeta disse que fotografias de intelectuais eram “ridículas” e chegou a pedir para que retirasse o seu retrato da edição de “Escola das facas”. A justificativa: não queria misturar a obra e a persona. É verdade que “Fotobiografia de João Cabral de Melo Neto” leva o poeta para além da sua poesia, mostrando sua trajetória como diplomata, pai, amigo, editor, impressor, homem de vanguarda e tradutor. Mas também se vale de um paradoxo do próprio Cabral. O homem que defendia para si a “ausência de biografia”, lembra Eucanaã Ferraz, é também o que guardou com extremo carinho e cuidado as fotografias e demais imagens que ajudam a compor a sua vida.

— Cabral era o poeta das coisas concretas e visíveis — diz Eucanãa, que assina o prefácio do livro. — Então o quer fizemos foi recolher o que é concreto na vida dele, catar os testemunhos materiais. Neste sentido, é um livro cabralino: mostra a parte visível de sua intimidade, ainda que não diga tudo sobre ele. O mistério de Cabral continua, porque mesmo que toda imagem tenha a sua eloquência, chega uma hora que ela nos devolve o silêncio.

Rascunho para o inacabado poema “Boi de coice boi de cambão”, que acabou nunca sendo publicado Foto: Editora Verso Brasil
Rascunho para o inacabado poema “Boi de coice boi de cambão”, que acabou nunca sendo publicado Foto: Editora Verso Brasil

Nas fotografias, que vão da infância em Recife aos últimos anos de vida, surge um Cabral muito diferente da figura sisuda e atormentada por enxaquecas. O que se vê é um homem bem-humorado com a família e com amigos, que brinca de boneca com a filha, assiste a touradas em sua homenagem, mas que também posa com ar contemplativo diante do mar. Já as fotos tiradas pelo próprio Cabral (ainda que não se possa atribuir a autoria a ele com toda certeza) demonstram uma apurada sensibilidade visual. Valéria vê uma possível influência da estética de “Aniki Bobó” (clássico longa de Manoel de Oliveira de 1942) em uma série de registros que fez dos filhos pequenos na praia. Eucanaã complementa:

— O livro mostra que mesmo uma vida de recolhimento como a de Cabral pode produzir imagens bonitas.

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Uma das primeiras do livro é um manuscrito com uma lista para uma possível “cronologia” de Cabral (mais uma prova de que o poeta, afinal, não era tão hostil assim a publicações sobre sua vida). O documento acabou servindo como guia para Valéria e Eucanaã, que recolheram quase todos os itens sugeridos por seu fotobiografado: condecorações, homenagens, poemas-prefácios para catálogos de artistas, depoimentos nos museus de imagem e de som, coleção de discos de flamenco e lançamentos de livros, entre outros.

— Não é apenas uma biografia de fotos, as entrevistas e documentos dialogam com as demais imagens e amarram a narrativa — diz Valéria.

Diálogo com as artes

Um dos fatores que tornam “Fotobiografia de João Cabral de Melo Neto” (Verso Brasil) uma obra de imagens ricas é a duradoura associação do poeta com as artes gráficas. Sua amizade com importantes artistas nacionais e estrangeiros, como Joan Miró, Joan Brossa, Fayga Ostrower e Mary Vieira, se destaca no livro. Ao longo da vida, o poeta pernambucano escreveu apresentações em catálogos de exposições de alguns dos principais nomes da vanguarda, algumas vezes em verso.

O seu poema-prefácio para a primeira exposição do escultor Franz Weissmann em Madri, em 1962, é conhecido — chegou a ser incluído 14 anos depois no livro “Museu de tudo”, em uma versão ampliada. Mas o catálogo original, com imagens das obras de Weissmann, era uma raridade vista por poucos. Ela ressurge agora na fotobiografia, acompanhada de uma foto de Cabral com o escultor.

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— Tudo que nós tinhamos do Weissmann era uma foto dele com o poeta Murilo Mendes — lembra Valéria Lamego, editora da Verso Brasil e coordenadora-geral da fotobiografia. — Então entrei em contato com o Instituto para pedir autorização. Eles não conheciam a foto, e me perguntaram se eu sabia do catálogo. No fim, foram muito generosos e enviaram não só o catálogo, como a foto de João Cabral com Franz Weissmann, que desconhecíamos, e ainda a foto de Weissmann diante de uma peça da sua série “Amassados”. Foi uma belissima troca de informação e imagens.

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O caso demonstra a dificuldade enfrentada por Valeria e Eucanãa Ferraz, também organizador da obra, para recolher mais de 500 imagens relacionadas à trajetória de Cabral. Mas também dá uma ideia de como era profunda a ligação entre o poeta e os artistas.

— As artes gráficas e a arquitetura aparecem desde o início da sua trajetória — diz Valéria. — Começa em Recife, no início dos anos 1940 com Vicente do Rego Monteiro. E aí ele descobre o (arquiteto) Le Corbusier e tudo muda para ele. Para nós era tão importante trazer para a fotobiografia esse universo das artes, que ajudou a moldar o próprio olhar de Cabral.

Transferido como vice-cônsul para o Consulado Geral em Barcelona, em 1947, Cabral vai se envolver com os artistas da vanguarda da cidade, como os pintores Joan Brossa e Antoni Tàpies, o filósofo Arnau Puig, o escultor Emili Boadella e o tipógrafo e gravador Enric Tormo. Mais tarde, o pernambucano seria responsável por teorizar, em palavras liberdade criativa de Joán Miró, com um livro de ensaios publicado em edição limitada na Espanha em 1950 (e no Brasil em 2018).

No trecho de uma entrevista para o “Caderno de Literatura Brasileira”, replicado na fotobiografia, Brossa explica a importância de Cabral para a cena artística do período. “Sua ideia era que a poesia deveria indicar um caminho de crítica social, mas sem jamais se submeter a qualquer teoria”, explica o artista. “Era algo muito inteligente, algo que naquele momento, final dos anos 40, começo dos 50, não era discutido pelos artistas de Barcelona. Vivíamos muito limitados durante o franquismo e ele abriu novas perspectivas para nós com suas ideias. Cabral vivia a sua época e a gente não”.

“Fotobiografia João Cabral de Melo Neto". Autores: Eucanaã Ferraz (org.) e Valéria Lamego (coordenação geral). Editora: Verso Brasil. Páginas: 224. Preço: R$128