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José Falero reflete sobre a periferia em "Os supridores", sua estreia literária

Ex-ajudante de pedreiro de 33 anos trata no romance de questões como desigualdade, ignorância e preconceito
O escritor José Falero Foto: Reprodução / Todavia
O escritor José Falero Foto: Reprodução / Todavia

A chamada “voz das periferias” tem merecido cada vez mais reconhecimento — como prova o justificado sucesso do rapper Emicida na Nettflix com o filme “AmarElo — É tudo pra ontem”. E o bacana é que, sendo o Brasil tão gigante em experiências periféricas, seus novos arautos nos surpreendem o tempo todo. É o caso do gaúcho José Falero , de 33 anos, criado na Zona Leste de Porto Alegre. “Os supridores”, seu primeiro romance, reflete com muita veracidade uma vivência distante da elite. Ele a reflete não apenas como se fosse um espelho, mas também como um profundo pensador da realidade que o cerca.

Pega a visão. Temos no centro da obra dois jovens da periferia da capital gaúcha. Primeiramente, o Marques. Pai de um guri de 3 anos, sua mulher acaba de anunciar que está grávida. É um baque. Seria maravilhoso se tivessem condições financeiras para sustentar uma nova criança, só que o inesperado sai caro, e o casal não sabe o que fazer. Quais alternativas? Aborto? É imerso em pensamentos desse tipo que Marques começa seu novo emprego no supermercado Fênix.

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Entra em cena, então, o colega Pedro. É o típico tagarela com discurso politizado e, principalmente, muita atitude. Diferentemente de quem vê tudo ruim e está crente de que nada vai melhorar, ele conta as horas para dar um jeito de ganhar muita grana. Não está em busca só de bens materiais, mas de experiências que justifiquem sua existência. Marxista meio fora de época, bem articulado, Pedro tem uma lábia coerente e sedutora, e vive pregando justiça social.

Marques e Pedro logo fazem amizade no Fênix, onde trabalham como supridores —ou seja, estoquistas. Em princípio, sua tarefa seria apenas reabastecer as prateleiras do supermercado, mas, no fim das contas, eles são aproveitados também para qualquer tipo de serviço pouco qualificado. Jogam nas 11, mas são muito, muito mal remunerados.

Tráfico como saída

Com ambos vivendo na pindaíba, Pedro logo sente-se à vontade para propor um negócio a Marques (ou Marx?): vender maconha. Simples assim. Seria essa, garante ele, a salvação da lavoura. Não mudariam o mundo, é verdade, mas ao menos conseguiriam consertar as injustiças sociais que tanto atordoam suas famílias.

Para a maioria de nós, o tráfico parece uma coisa de filme de Hollywood, distante do nosso dia a dia. Mas pesquise aí na vizinhança (com cuidado) e você possivelmente vai descobrir que não é bem assim. Sempre há demanda para qualquer veneno antimonotonia, seja lá onde for. Trata-se, portanto, de um business de ocasião, espécie de empreendedorismo para quem não tem grandes perspectivas de progresso. Assim, o que Pedro identificou foi apenas uma oportunidade de mercado. Descobriu que sua região é próspera na venda de drogas mais caras, como a cocaína, e que o fumo do capeta está desprezado pelos traficantes. Fazendo sua pesquisa entre os consumidores locais, ele percebe que existe, sim, muita gente interessada na velha diamba.

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É nessa marola que Marques e Pedro mergulham de cabeça. Atingem seus objetivos muito antes que o previsto, mas, como são cidadãos da paz, não pretendem ficar para sempre vendendo maconha. Enquanto não conseguem sua liberdade definitiva, seguem adiante vendendo a erva, mesmo encontram alguns obstáculos perigosos no caminho, pois é difícil lidar com a concorrência, que logo cresceu o olho para cima deles.

Marginalidade

Contar mais do que isso, aqui, poderia afastar o leitor de experiências interessantes, pouco retratadas na literatura de butique. Mas que ninguém se engane. Falando assim, pode parecer que “Os supridores” é um drama sisudo, inquisidor, moralista. Longe disso. Uma boa sacada do romance é que ele não discute questões éticas ou morais — o que seria totalmente inútil. O que se discute, com muita vivacidade, são questões como sobrevivência, pobreza, desigualdade, ignorância, preconceito, desrespeito, a injusta marginalidade das periferias.

Ex-ajudante de pedreiro, hoje desenvolvedor de software, Falero é um escritor autodidata que conhece muito bem esses e outros temas tão caros a comunidades pobres de todo o país. Como já mostrou nos contos de “Vila Sapo” (Editora Venas Abiertas, 2019), em seus textos a linguagem peculiar das periferias flui naturalmente, como vemos no uso de tantas gírias e da onipresente expressão “tá ligado?”.

Nada disso emperra a narrativa. Os personagens são vivos, e as situações em que se envolvem não são nada estilizadas. É tudo fruto da vivência bruta de Falero e seus pares não só com a violência cotidiana, como também com a certeza de que ainda há muito a ser consertado no mundo.

“Os supridores”

Autor: José Falero. Editora: Todavia. Páginas: 304. Preço: R$ 59,90. Cotação: Bom