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José Miguel Wisnik investiga impacto da mineração em Drummond

Em ‘Maquinação do mundo’, escritor relaciona exploração em Itabira (MG) à obra do poeta

Wisnik: reflexão que deu origem ao livro nasceu quando Wisnik visitou Itabira e viu que o Pico do Cauê, presença central na poesia de Drummond, havia virado uma cratera
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Márcia Foletto
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Agência O Globo
Wisnik: reflexão que deu origem ao livro nasceu quando Wisnik visitou Itabira e viu que o Pico do Cauê, presença central na poesia de Drummond, havia virado uma cratera Foto: Márcia Foletto / Agência O Globo

RIO - Em 2014, José Miguel Wisnik esteve em Itabira, Minas Gerais, cidade natal de Carlos Drummond de Andrade. A visão do horizonte recortado de pedra bateu nele como pancada.

— Eu não sabia que o Pico do Cauê, uma imagem matricial na obra de Drummond, tinha virado uma cratera. Uma montanha desapareceu! Dava a sensação de que a máquina do mundo estava ali — diz Wisnik, referindo-se ao poema de Drummond.

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“PRESENÇA SURDA”

O choque daquela visão foi o estopim da reflexão que gerou “Maquinação do mundo — Drummond e a mineração” (Companhia das Letras). Somos apresentados ao mesmo choque nas páginas iniciais do livro, com fotografias que acompanham as transformações — geográficas, mas também sociais, humanas — da paisagem de Itabira. A destruição do Pico do Cauê, testemunhada nessas imagens, tem o efeito simbólico comparável ao de Tom Jobim abrir sua janela certo dia e não ver o Corcovado, o Redentor.

— Que poeta no Brasil e no mundo teve um choque assim entre sua mitologia pessoal mais íntima e a geoeconomia mundial? — pergunta Wisnik.

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A constatação da grandeza desse confronto permitiu que o escritor observasse a obra de Drummond por esse recorte (“A mineração acaba tendo uma presença surda, e às vezes evidente, na obra do Drummond”, diz). Quando se lançou na pesquisa histórica, Wisnik percebeu que a questão era muito maior.

— Descobri que Itabira esteve no centro das discussões sobre mineração no Brasil desde 1910. A Vale do Rio Doce foi criada a partir daí.

Além dos poemas , Wisnik recorreu a outros textos de Drummond. Num deles, um artigo publicado em 1938, ele expõe com clareza a diferença entre a rocha do poeta (ou a do homem, em última instância) e a do capitalismo impessoal: “Então Itabira — o Brasil — vai acabar derretido em Birmingham, em Cardiff? Então os nossos duzentos anos de luta contra a pedra e contra o mato (...) vão desaparecer diante da fria contabilidade do rude imperialismo internacional?”.

— A pedra, a dureza mineral, está presente de muitos modos em Drummond. O sentimento do mundo em que o ser opaco aparece, o obstáculo, está entranhado na poesia dele. E nesses poemas fundamentais, “No meio do caminho” e “A máquina do mundo” isso se revela em duas dimensões diferentes — avalia Wisnik. — Interpreto “A máquina do mundo” como um poema que entrelaça capital e ser como uma fita de Möbius. É a história da exploração extrativista do mundo, mas também é uma interrogação sobre o enigma do ser.

MARIANA TEM A MESMA RAIZ

No livro, Wisnik lembra uma propaganda da Vale do Rio Doce que tem força de síntese cruel, um escárnio do capital sobre o poeta. Diz o anúncio: “Há uma pedra no caminho do desenvolvimento brasileiro”.

— A publicidade toma a frase de Drummond e aplica pros seus próprios fins. É um choque claro entre a poesia e a grande máquina — diz Wisnik. — E o que ela tem de ostensivo é o que aparece na tragédia de Mariana de 2015, que nasce da mesma Vale do Rio Doce, do mesmo processo da mineração de Itabira que Drummond denunciava.

Capa do livro "Maquinação do mundo", de José Miguel Wisnik Foto: Reprodução
Capa do livro "Maquinação do mundo", de José Miguel Wisnik Foto: Reprodução

“Maquinação do mundo — Drummond e a mineração”

AUTOR: José Miguel Wisnik. EDITORA: Companhia das Letras PÁGINAS: 304. PREÇO: R$ 64,90.

TRECHO:

Vida e obra de Carlos Drummond de Andrade acompanham a curva desse arco histórico — intencionalmente ou não. De perto ou de longe, dentro de Itabira ou com Itabira dentro dele, o poeta viveu o “destino mineral” que reconheceu ali (“um destino mineral, de uma geometria dura e inelutável, te prendia, Itabira, ao dorso fatigado da montanha”).

Esse real, duro e inelutável, comparece espasmodicamente na sua poesia, desde as alusões às bordas primordiais do pico do Cauê até a vala comum d’“A montanha pulverizada”(...). “britada em bilhões de lascas” e levada pelo “trem maior do mundo”.

Entenda-se a excepcionalidade da situação: trata-se do encavalamento surdo de uma mitologia pessoal, apegada ao enigma familiar provinciano e amplificada pelo poder simbólico da obra deste que veio a ser o maior poeta brasileiro do século, com a história da mineração no Brasil (...).