RIO - Em 2014, José Miguel Wisnik esteve em Itabira, Minas Gerais, cidade natal de Carlos Drummond de Andrade. A visão do horizonte recortado de pedra bateu nele como pancada.
— Eu não sabia que o Pico do Cauê, uma imagem matricial na obra de Drummond, tinha virado uma cratera. Uma montanha desapareceu! Dava a sensação de que a máquina do mundo estava ali — diz Wisnik, referindo-se ao poema de Drummond.
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“PRESENÇA SURDA”
O choque daquela visão foi o estopim da reflexão que gerou “Maquinação do mundo — Drummond e a mineração” (Companhia das Letras). Somos apresentados ao mesmo choque nas páginas iniciais do livro, com fotografias que acompanham as transformações — geográficas, mas também sociais, humanas — da paisagem de Itabira. A destruição do Pico do Cauê, testemunhada nessas imagens, tem o efeito simbólico comparável ao de Tom Jobim abrir sua janela certo dia e não ver o Corcovado, o Redentor.
— Que poeta no Brasil e no mundo teve um choque assim entre sua mitologia pessoal mais íntima e a geoeconomia mundial? — pergunta Wisnik.
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A constatação da grandeza desse confronto permitiu que o escritor observasse a obra de Drummond por esse recorte (“A mineração acaba tendo uma presença surda, e às vezes evidente, na obra do Drummond”, diz). Quando se lançou na pesquisa histórica, Wisnik percebeu que a questão era muito maior.
— Descobri que Itabira esteve no centro das discussões sobre mineração no Brasil desde 1910. A Vale do Rio Doce foi criada a partir daí.
Além dos poemas , Wisnik recorreu a outros textos de Drummond. Num deles, um artigo publicado em 1938, ele expõe com clareza a diferença entre a rocha do poeta (ou a do homem, em última instância) e a do capitalismo impessoal: “Então Itabira — o Brasil — vai acabar derretido em Birmingham, em Cardiff? Então os nossos duzentos anos de luta contra a pedra e contra o mato (...) vão desaparecer diante da fria contabilidade do rude imperialismo internacional?”.
— A pedra, a dureza mineral, está presente de muitos modos em Drummond. O sentimento do mundo em que o ser opaco aparece, o obstáculo, está entranhado na poesia dele. E nesses poemas fundamentais, “No meio do caminho” e “A máquina do mundo” isso se revela em duas dimensões diferentes — avalia Wisnik. — Interpreto “A máquina do mundo” como um poema que entrelaça capital e ser como uma fita de Möbius. É a história da exploração extrativista do mundo, mas também é uma interrogação sobre o enigma do ser.
MARIANA TEM A MESMA RAIZ
No livro, Wisnik lembra uma propaganda da Vale do Rio Doce que tem força de síntese cruel, um escárnio do capital sobre o poeta. Diz o anúncio: “Há uma pedra no caminho do desenvolvimento brasileiro”.
— A publicidade toma a frase de Drummond e aplica pros seus próprios fins. É um choque claro entre a poesia e a grande máquina — diz Wisnik. — E o que ela tem de ostensivo é o que aparece na tragédia de Mariana de 2015, que nasce da mesma Vale do Rio Doce, do mesmo processo da mineração de Itabira que Drummond denunciava.
“Maquinação do mundo — Drummond e a mineração”
AUTOR: José Miguel Wisnik. EDITORA: Companhia das Letras PÁGINAS: 304. PREÇO: R$ 64,90.
TRECHO:
Vida e obra de Carlos Drummond de Andrade acompanham a curva desse arco histórico — intencionalmente ou não. De perto ou de longe, dentro de Itabira ou com Itabira dentro dele, o poeta viveu o “destino mineral” que reconheceu ali (“um destino mineral, de uma geometria dura e inelutável, te prendia, Itabira, ao dorso fatigado da montanha”).
Esse real, duro e inelutável, comparece espasmodicamente na sua poesia, desde as alusões às bordas primordiais do pico do Cauê até a vala comum d’“A montanha pulverizada”(...). “britada em bilhões de lascas” e levada pelo “trem maior do mundo”.
Entenda-se a excepcionalidade da situação: trata-se do encavalamento surdo de uma mitologia pessoal, apegada ao enigma familiar provinciano e amplificada pelo poder simbólico da obra deste que veio a ser o maior poeta brasileiro do século, com a história da mineração no Brasil (...).