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Julian Barnes rompe barreiras da biografia no ótimo 'O homem do casaco vermelho'

A partir de uma pintura, autor de 'O sentido de um fim' conta saga do mulherengo e sedutor Samuel-Jean Pozzi, francês pioneiro da ginecologia
Retrato do Dr. Pozzi e Julian Barnes Foto: Reprodução
Retrato do Dr. Pozzi e Julian Barnes Foto: Reprodução

“Biografia é um conjunto de buracos amarrados com um barbante.” Nenhuma outra frase de “O homem do casaco vermelho”, o mais recente livro do escritor inglês e francófilo assumido Julian Barnes, é capaz de explicar tão bem o princípio composicional dessa curiosa narrativa biográfica. Partindo da vida, das contribuições científicas e das aventuras sexuais do cirurgião e ginecologista francês Samuel-Jean Pozzi (1846-1918), o livro abre-se gradativamente para a constituição de uma complexa rede de relações artísticas e amorosas durante a “distante, decadente, agitada, violenta, narcisista e neurótica” Belle Époque francesa, tudo isso tratado, é claro, sob o signo da fina ironia que notabiliza o premiado trabalho de Barnes. Se são muitos os “buracos” biográficos com que se depara o autor, não menos numerosos são os “barbantes”, os começos possíveis que ele encontra em seu percurso investigativo.

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Um deles é o quadro “Dr. Pozzi em casa”, de John S. Sargent (1881), com o qual Barnes trava contato na National Portrait Gallery em Londres, em 2015, e que dá título ao livro. O tom dominante da pintura é o escarlate, um vermelho cor de sangue que parece tomar conta de tudo. Ao fundo, as cortinas de vinho se prolongam num chão não menos rubro; à frente, destaca-se uma figura vestida com um longo casaco vermelho, de tonalidade um pouco mais clara. Trata-se do Dr. Pozzi, também conhecido como “Doctor Love” (Doutor Amor), retratado aos 35 anos, de barba, uma figura bonita e confiante. Para Barnes, o quadro exala a malícia do próprio Sargent: a posição das mãos, as cores, os cordões da cintura, a pose, o olhar úmido — tudo aponta para um esboço indireto tanto da profissão de Pozzi quanto de sua fama de sedutor e mulherengo.

O espírito da Belle Époque

A partir dos vestígios do quadro, Barnes nos lança em uma cadeia de eventos e pessoas que desnudam não só a vida privada da família Pozzi, mas o próprio espírito cultural da Belle Époque. Surgem personagens fundamentais, aos quais se vinculam todos os outros, como o conde de Montesquiou, amigo do médico e homossexual “cauteloso”, um dândi temperamental e esnobe, para sempre assombrado pelos fantasmas de si, pelos alter ego literários presentes, entre outros, em “Às avessas”, de Huysmans, e “Em busca do tempo perdido”, de Proust; como Sarah Bernhardt, paciente e uma das tantas amantes de Pozzi, cuja liberdade sexual alimenta boatos que vão desde a ninfomania e o hermafroditismo até suspeitas de anorgasmia; como o príncipe de Polignac, outro amigo de Pozzi, um aristocrata decadente e “homossexual enrustido” que acaba se casando com Winnaretta Singer, descrita por Barnes como uma das “lésbicas fervorosas” do período, em um arranjo social de benefício mútuo.

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Um outro “barbante” da narrativa diz respeito às três coleções de retratos de figuras célebres da época — artistas, militares, cientistas, atletas, políticos etc. — que acompanhavam os tabletes de chocolate francês Félix Potin entre os anos de 1898 e 1922. “O homem do casaco vermelho” narra as histórias de diversos desses personagens a partir do entrecruzamento das imagens da coleção, como se dispusesse de um baralho de cartas capaz de oferecer algumas das chaves para a resolução de enigmas biográficos.

Mas em meio a tantos “buracos”, “barbantes”, retratos e poses, um dos elementos que confere unidade à narrativa de Julian Barnes é de fato a fofoca. O livro, repleto de especulações inconclusas — “talvez”, “quem sabe”, “não podemos dizer” —, mimetiza um dispositivo de sociabilidade caro aos círculos artístico-literários e jornais da época. Destaca-se aqui um fofoqueiro contumaz: Jean Lorrain, “dândi, poeta, romancista, dramaturgo, crítico, cronista”, mas, acima de tudo, “fofoqueiro, eteromaníaco e duelista”. Não eram tempos de Twitter, e muitas das desavenças pessoais e escândalos públicos — motivados, via de regra, pela livre circulação da fofoca — eram resolvidos na bala, por meio de duelos, “um meio mais rápido e mais barato do que um processo de calúnia ou difamação”.

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‘Espécie de herói’

Os frequentes duelos e tiros listados no livro de Barnes prenunciam o fim tragicômico do próprio Dr. Pozzi. Cirurgião de renome internacional, racionalista convicto, ponto de convergência de amizades improváveis, alguém descrito por Barnes como “uma espécie de herói”, Pozzi é assassinado com três tiros disparados por um de seus pacientes, M. Machu, que responsabilizou o médico pelas dores de uma impotência sexual não curada. Segundo Barnes, o lamento público da despedida não impediu a “ralé” parisiense de insinuar que Pozzi havia deixado o sr. Machu impotente de propósito, de olho na sra. Machu...

Erudito, detetivesco e profundamente irônico, “O homem do casaco vermelho” é, sem dúvida”, um volume capaz de reconfigurar as fronteiras do gênero biográfico, arrastando o leitor para o papel de testemunha privilegiada da conquista gradativa da história.

André Cechinel é autor, entre outros, do livro “O referente errante”, sobre o poema “The Waste Land”, de T. S. Eliot

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"O homem do casaco vermelho"
Autor: Julian Barnes. Tradução: Léa Viveiros de Castro. Editora: Rocco. Páginas: 272. Preço: R$ 79,90. Cotação: ótimo.