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Lançando livro, David Grossman diz que não teve um dia de paz em sua vida

Autor israelense compara protagonista de ‘O inferno dos outros’ com seu país
O escritor israelense David Grossman Foto: Pedro Kirilos / Agência O Globo
O escritor israelense David Grossman Foto: Pedro Kirilos / Agência O Globo

SÃO PAULO – Pacifista e defensor da solução de dois Estados para o conflito árabe-israelense, o escritor David Grossman, de 62 anos, diz que não teve um dia de paz em sua vida. Grossman, que esteve no Brasil nas últimas duas semanas para lançar seu romance mais recente, “O inferno dos outros” (Companhia das Letras), e para participar do seminário Fronteiras do Pensamento, considera que os brasileiros entendem mais de vida em sociedade e de respeito às diferenças do que seus compatriotas em Israel. No novo livro, Dovale é um comediante de stand up decadente que tem uma crise nervosa no palco, não consegue mais sustentar o riso e acaba expondo que vive sob o impacto de um intenso drama pessoal. Para o autor, seu personagem, como seu país, não tem paz por ter escolhido uma vida paralela. Na entrevista a seguir, ele explica o porquê.

O que surgiu primeiro em “O inferno dos outros”: a história de Dovale ou a situação em que ele se encontra como comediante de stand up decadente?

Há 23 anos, tive essa ideia de um jovem que sai do sul de Israel para ir até Jerusalém, aonde vai acompanhar o funeral de um dos pais. Só não lhe dizem quem será enterrado, a mãe ou o pai. Nesse tempo todo, sempre que terminava um romance, eu pensava: “Agora é a hora de escrever sobre esse menino”. Mas nunca encontrava uma boa maneira de fazer isso. Então, tive um estalo. Se eu contasse essa história por meio de um comediante de stand up que se apresenta para uma plateia totalmente indiferente aos seus fantasmas pessoais? De repente, ele começa a desmoronar e relembrar um passado doloroso e triste. Pensei no confronto entre essa narrativa e as circunstâncias em que se encontra. Achei que deveria explorar essa situação.

Há uma oposição entre Dovale e um juiz que assiste à apresentação na casa noturna. Isso foi estudado?

Pensei nas contradições entre os dois personagens. O comediante de stand up quebra todas as regras, não obedece ao politicamente correto, pode ser vulgar, rude e também doce e suave — há algo de libertário nele. Enquanto o juiz está congelado no título de “juiz”, tem que ser sóbrio, racional, lógico. O problema é que na figura do juiz também há um anarquista. E Dovale faz com que esse personagem interior se manifeste.

SC - São Paulo (SP) - Capa de "O inferno dos outros", do autor israelense David Grossman. Foto Divulgação Foto: Divulgação
SC - São Paulo (SP) - Capa de "O inferno dos outros", do autor israelense David Grossman. Foto Divulgação Foto: Divulgação

O título do romance em português não é o mesmo do original em hebraico.

Em hebraico, e na maioria das outras traduções, o título é: “Um cavalo entra em um bar”. Este é o início de uma piada famosa em várias línguas. Um cavalo entra em um bar, se aproxima do balcão, pede um copo de vodca, toma de um gole e pergunta quanto deve. O barman responde que são US$ 50, o animal paga e caminha para a saída. O funcionário, que estava intrigado, o chama e diz: “Como pode uma coisa dessas? Nunca vi um cavalo falante!”. Ao que o cavalo responde: “Com esses preços nunca mais vai ver!”.

Mas o título em português, “O inferno dos outros”, é uma referência ao filósofo Jean-Paul Sartre?

Claro que esse título ecoa Sartre. Mas acho, principalmente, que a história tem a ver com essa tentação de espiar o inferno de outro ser humano. Apenas espiar, porque olhar de verdade significa se comprometer e, dessa maneira, não há como voltar atrás. Claro que Dovale quer que olhem para suas feridas, mas quem quer olhar para as feridas dos outros? As pessoas estão saindo da casa noturna onde ele se apresenta, mas algumas ficam, não fogem. Porque estão tocadas e, talvez, por pensarem que sua rudeza e falta de tato sejam apenas uma fachada para algo mais delicado e frágil. Temos sorte por ainda existirem no mundo pessoas assim, que não olham para as feridas dos outros de forma sensacionalista.

Existe uma relação entre essa história e a situação em Israel e o conflito ancestral com os palestinos?

Dovale vive uma realidade paralela. Se vivesse sua vida seria outro ser humano. Em vez disso, ele escolheu ser diferente. Talvez tenha tomado essa decisão na viagem ao funeral de um de seus pais. Você vê indivíduos vivendo vidas paralelas. Pode ser uma escolha errada de trabalho, de parceiro, até de gênero. Israel, na minha opinião, nos últimos anos, vive uma vida paralela. Por causa da ocupação, por causa das ansiedades, porque começamos a nos acostumar com uma situação distorcida. Temos que nos rebelar contra essa distorção e tentar melhorar essa situação e nos arriscar em busca da paz com os palestinos. Sempre que havia uma oportunidade de fazer a paz, em geral, no Oriente Médio, escolhemos o caminho da guerra. Eu nunca tive um dia de paz na minha vida. Vocês sabem muito mais sobre paz do que nós.

A solução de dois Estados é a melhor?

Eu acho que é a única solução possível para esses dois povos. Não dá para viverem juntos de maneira sustentável e digna num estado só. Eles lutaram por centenas de anos e se odeiam profundamente. Não dá para romantizar a situação. Cada um suspeita do outro. O poder do fanatismo está tão arraigado que não dá para esperar que essas pessoas possam viver como entidades autônomas ou cidadãos. Gostaria que vivessem sem fronteiras e sem definições nacionalistas. Mas essa ideia romântica só é possível com dois Estados. Quem sabe, no futuro, uma federação e cantões nacionais — como na Suíça?

O que o senhor pensa sobre o Nobel de Literatura recém-concedido a Bob Dylan?

É uma decisão problemática. Acho que ele é um artista maravilhoso, representa o espírito de mais de toda uma geração e o espírito da América. Mas recebeu o prêmio pela qualidade de sua poesia? Foi como poeta? Não tenho certeza. Recebeu por ser Bob Dylan? Não sei se existe essa categoria. Ele é um gênio, e cresci com suas músicas. Mas, se a Academia sueca quisesse realmente premiar um legítimo representante da literatura americana, poderia ter escolhido Don DeLillo, Philip Roth, Paul Auster. Há tantos talentos que merecem esse prêmio... É uma decisão estranha.