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Lima Barreto foi uma das primeiras vozes a se opor contra 'matadores de mulheres'

Escritor denunciou o feminicídio em crônicas nos jornais de sua época

RIO — Os chamados crimes passionais tiveram uma repercussão crescente na imprensa carioca, sobretudo a partir da década de 1910, quando se tornam objeto de forte preocupação social e passam a ser vistos como “algo particularmente ameaçador”, conforme assinalou a historiadora Susan Besse. A noção de “crime passional” ou “crime decorrente da paixão” começou a se difundir a partir das últimas décadas do século XIX com a emergência das novas tendências da “moderna Política Criminal” que se contrapunha aos pressupostos centrais do Direito Clássico, entre os quais o princípio de que a responsabilidade penal encontrava-se baseada na responsabilidade moral pautada no livre arbítrio.

Embora o Código Penal Brasileiro de 1890 estivesse nitidamente calcado nos princípios do Direito Clássico, o § 4o do artigo 27 incluiu entre os que não seriam considerados criminosos aqueles que se achassem em estado de “completa privação de sentidos e de inteligência no ato de cometer o crime”, entre os quais figuravam os/as criminosos/as que agiam sob o efeito das paixões (políticas, religiosas, amorosas etc.). Tal determinação ampliou e/ou redefiniu as possibilidades de absolvição ou de penalização leve dos (as) acusados (as) de crimes passionais, através da comprovação de que, agindo sob os impulsos quer da “duradoura paixão”, quer da “súbita emoção”, no momento do crime, apresentavam perturbações psicofisiológicas que os tornavam completamente irresponsáveis por seus atos.

Nas defesas destes acusados/as coube, pois, um papel fundamental às correntes da medicina mental que conferiam aos estados emocionais e passionais o status de uma verdadeira obsessão, equiparando-os a uma espécie de loucura, que poderia atingir momentaneamente indivíduos mentalmente sãos. Evaristo de Moraes tornou-se um dos advogados mais brilhantes e bem sucedidos na utilização do § 4º do Art. 27 do Código Penal de 1890 como dirimente dos crimes passionais.

Através das crônicas “Não as matem”, “Lavar a honra, matando?”, “Os matadores de mulheres”, “Os uxoricidas e a sociedade brasileira” e “Mais uma vez”, Lima Barreto foi uma das primeiras vozes que se opuseram à absolvição ou à condenação branda dos “matadores de mulheres” – os “uxoricidas”, como eram conhecidos na época. Segundo o escritor os costumes que conferiam ao homem o direito de matar a mulher adúltera eram “selvagens” e “bárbaros”.

Defensor do divórcio e crítico contundente do casamento, Lima Barreto acusava as feministas de não lutarem contra essa “ordem, que tende a se perpetuar entre nós, aviltando a mulher, rebaixando-a ao estado social da barbárie medieval, de quase escrava. Degradando-a a condição de cousa, de animal doméstico, de propriedade nas mãos dos maridos”. Além disso, ele reprovou duramente a conduta do advogado Evaristo de Moraes, não o perdoando por defender criminosos passionais, sendo ele o liberal, o socialista quase anarquista que inspirava tanta admiração.

O Código Penal Brasileiro promulgado em 1940 excluiu a referência à “perturbação dos sentidos e da inteligência” como dirimente da responsabilidade dos/as criminosos/as passionais. Mas, por outro lado, foi introduzida a figura do “homicídio privilegiado”, garantindo a possibilidade da aplicação de penalizações mais brandas aos/às referidos/as criminosos/as movidos pela “emoção” e pela “paixão”. Além disto, o novo Código resguardou, em seus artigos 138,139 e 140, a honra como direito e, portanto, passível de legítima defesa, instituindo-se, assim, a possibilidade da utilização da tese da legítima defesa da honra, alegando-se que a infidelidade da vítima havia afrontado os direitos do/a réu/ré, insultando sua honra e sua moral.

* Magali Engel é Professora associada da UERJ, Doutora em História Social pela UNICAMP e Pesquisadora Residente da Fundação Biblioteca Nacional