No dia 31 de maio de 1978, a psicanalista Livia Imbassahy pegou sua mala, encheu-a de roupas, livros e discos, e foi morar com Luiz Alfredo Garcia-Roza num prédio antigo no Jardim Botânico, em frente a um flamboyant.
— Então florimos – diz Livia Garcia-Roza. – Começava ali, sem que soubéssemos, a mais bela história de nossas vidas. Ele me deu nome, herança, proteção, saber, orientação. Deu amor.
De lá para cá, são 41 anos de vida em comum, três filhos (de relações anteriores, um dele e duas dela), duas netas, um bisneto, duas casas, dois bairros, dois cachorros e uma dezena de viagens. E quase 30 livros. Doze de Luiz Alfredo – o último o recém-lançado “A última mulher”, nova aventura do delegado Espinosa – e 16 de Livia, marcados por protagonistas femininas fortes.
— Uma vez eu disse a meu marido: “Quantas mulheres eu já pus no mundo...” E ele: “E eu, só matando.”
Ela acaba de entregar à Companhia das Letras um romance autobiográfico, “Não sabia que nos amávamos tanto”. Como dá a entender o título, Livia vem se dando conta de que os estreitos laços que unem os dois escritores são ainda mais fortes do que pensava. A constatação acontece numa situação-limite: Garcia-Roza está internado há cinco meses no hospital , por conta de uma doença neurológica. Livia prefere não detalhar as causas da internação.
— Ele era o antiespetáculo por natureza. Eu só não falo o nome da doença, mas está tudo dito nos textos que tenho postado no Facebook.
Na rede social, Livia escreve: “Como é difícil aceitar que ele já está no passado”; “A perda da memória não implica a perda da linguagem. As palavras estão preservadas, apenas não lembram o caminho de volta”; “Luiz Alfredo permanece vivo, embora já distante de nós, um homem que veio preencher o mundo com o seu saber e a sua competência”.
Biografia suspensa
A internação interrompeu as conversas que o casal vinha tendo sobre a história de Luiz Alfredo. A ideia de um livro surgiu há menos de um ano, quando Livia relembrou ao marido sua trajetória de vida. Ele e o irmão nasceram gêmeos, mas só Garcia-Roza sobreviveu. Mais tarde, sagrou-se campeão de basquete. Um tio materno intercedeu e apresentou-o à cultura. Ia fazer Arquitetura, mas decidiu-se, sem a família saber, por Filosofia. Depois cursou Psicologia, e até deu aula para a própria turma. Na UFRJ, começou como professor assistente e chegou a professor emérito. Lá, criou com colegas o mestrado de Psicanálise. A doença não paralisou os planos de Livia. Eles pararam de conversar na parte da Filosofia, mas ela tem escrito sozinha a partir daí. A obra vai se chamar “Eu sou um professor” (ver trecho abaixo) .
— Suas aulas eram uma festa intelectual — diz Lívia, que, mesmo sem ser matriculada, pediu para assistir a uma aula de mestrado de Garcia-Roza. — Ele dizia: “Eu escrevo ficção, mas eu sou um professor, vivo do meu pensamento.”
Já Livia, que clinicou por 30 anos, diz: “Sou uma escritora.” Ela estreou na literatura aos 54 anos, em 1995, com o romance “Quarto de menina”. Garcia-Roza começou pouco depois, em 1996, aos 60 anos, com “O silêncio da chuva”.
A autora é ativa no Facebook, com textos curtos em que alia altas doses de sensibilidade e de qualidade literária. Nos últimos meses, como é natural, boa parte dos posts fala de Garcia-Roza: “Não desejo que nossa história termine sem fazer um agradecimento a meu marido pela sua grandeza, rara; pela escuta sempre a postos, pelo respeito a minha história, pela presença firme a meu lado; pelo amor servido em grandes e consistentes doses de afeto.”
Livia lamenta que o marido não tenha acompanhado o lançamento de “A última mulher” (“achei bárbaro, ele voltou com toda força”) e não saiba que o filme “O silêncio da chuva”, uma parceria de Globo Filmes e Imagem Filmes dirigida por Daniel Filho, está terminado e será lançado até o fim do ano. Num post, ela diz: “Ninguém sabe a hora que se chega ao mundo como também não sabemos a hora que nos despedimos dele. O importante é fazer valer esse intervalo, a que chamamos vida.”
Intervalo que Garcia-Roza e Livia sempre fizeram valer, em toda a sua intensidade.
Leia trecho inicial de "Eu sou um professor"
Na primavera de 36 nascem os gêmeos prematuros e univitelinos Luiz e Alfredo no Rio de Janeiro, que ainda era a capital da República. Era uma época de poucos recursos na medicina no que dizia respeito a atendimentos a prematuros. Havia que improvisar. Várias são as complicações que podem apresentar os bebês prematuros. Uma delas é a temperatura corporal. Na falta de incubadora, o pai dos meninos teve a ideia de encher garrafas de vidro com água quente, envolvidas em panos, para contornar os berços e aquecer os filhos. Eles eram tão pequenos que o enxoval permaneceu nas gavetas. Foram vestidos com as roupas do boneco de uma prima. Passado dois meses, apesar de toda a dedicação, só um deles vinga. Os pais então juntaram os nomes no sobrevivente de apenas um quilo. Diziam que ele cabia numa caixa de sapato. Terá sido Luiz ou o Alfredo que morreu? Questão que permaneceu fantasmática para Luiz Alfredo. Cedo a vida fez um buraco nele. Ele porta esse espanto. Essa interrogação calada. O enigma, que mais tarde ele vai perseguir nos romances policiais.