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Livia Garcia-Roza: 'Eu e Luiz Alfredo vivemos a mais bela história de nossas vidas'

Após finalizar romance autobiográfico, autora prepara romance sobre o marido, também escritor, internado há cinco meses
A escritora Livia Garcia-Roza em sua casa Foto: Marcos Ramos / Agência O Globo
A escritora Livia Garcia-Roza em sua casa Foto: Marcos Ramos / Agência O Globo

No dia 31 de maio de 1978, a psicanalista Livia Imbassahy pegou sua mala, encheu-a de roupas, livros e discos, e foi morar com Luiz Alfredo Garcia-Roza num prédio antigo no Jardim Botânico, em frente a um flamboyant.

— Então florimos – diz Livia Garcia-Roza. – Começava ali, sem que soubéssemos, a mais bela história de nossas vidas. Ele me deu nome, herança, proteção, saber, orientação. Deu amor.

Livia Garcia-Roza e Luiz Alfredo Garcia-Roza em foto de arquivo Foto: Marcos Ramos / Agência O Globo/Acervo pessoal
Livia Garcia-Roza e Luiz Alfredo Garcia-Roza em foto de arquivo Foto: Marcos Ramos / Agência O Globo/Acervo pessoal

De lá para cá, são 41 anos de vida em comum, três filhos (de relações anteriores, um dele e duas dela), duas netas, um bisneto, duas casas, dois bairros, dois cachorros e uma dezena de viagens. E quase 30 livros. Doze de Luiz Alfredo – o último o recém-lançado “A última mulher”, nova aventura do delegado Espinosa – e 16 de Livia, marcados por protagonistas femininas fortes.

— Uma vez eu disse a meu marido: “Quantas mulheres eu já pus no mundo...” E ele: “E eu, só matando.”

Ela acaba de entregar à Companhia das Letras um romance autobiográfico, “Não sabia que nos amávamos tanto”. Como dá a entender o título, Livia vem se dando conta de que os estreitos laços que unem os dois escritores são ainda mais fortes do que pensava. A constatação acontece numa situação-limite: Garcia-Roza está internado há cinco meses no hospital , por conta de uma doença neurológica. Livia prefere não detalhar as causas da internação.

— Ele era o antiespetáculo por natureza. Eu só não falo o nome da doença, mas está tudo dito nos textos que tenho postado no Facebook.

Na rede social, Livia escreve: “Como é difícil aceitar que ele já está no passado”; “A perda da memória não implica a perda da linguagem. As palavras estão preservadas, apenas não lembram o caminho de volta”; “Luiz Alfredo permanece vivo, embora já distante de nós, um homem que veio preencher o mundo com o seu saber e a sua competência”.

Livia Garcia-Roza com o livro "A última mulher", a mais recente obra de seu marido, Luiz Alfredo Garcia-Roza Foto: Marcos Ramos / Agência O Globo
Livia Garcia-Roza com o livro "A última mulher", a mais recente obra de seu marido, Luiz Alfredo Garcia-Roza Foto: Marcos Ramos / Agência O Globo

Biografia suspensa

A internação interrompeu as conversas que o casal vinha tendo sobre a história de Luiz Alfredo. A ideia de um livro surgiu há menos de um ano, quando Livia relembrou ao marido sua trajetória de vida. Ele e o irmão nasceram gêmeos, mas só Garcia-Roza sobreviveu. Mais tarde, sagrou-se campeão de basquete. Um tio materno intercedeu e apresentou-o à cultura. Ia fazer Arquitetura, mas decidiu-se, sem a família saber, por Filosofia. Depois cursou Psicologia, e até deu aula para a própria turma. Na UFRJ, começou como professor assistente e chegou a professor emérito. Lá, criou com colegas o mestrado de Psicanálise. A doença não paralisou os planos de Livia. Eles pararam de conversar na parte da Filosofia, mas ela tem escrito sozinha a partir daí. A obra vai se chamar “Eu sou um professor” (ver trecho abaixo) .

— Suas aulas eram uma festa intelectual — diz Lívia, que, mesmo sem ser matriculada, pediu para assistir a uma aula de mestrado de Garcia-Roza. — Ele dizia: “Eu escrevo ficção, mas eu sou um professor, vivo do meu pensamento.”

Cermiônia de casamento de Livia e Luiz Alfredo Garcia-Roza Foto: Marcos Ramos / Agência O Globo
Cermiônia de casamento de Livia e Luiz Alfredo Garcia-Roza Foto: Marcos Ramos / Agência O Globo

Já Livia, que clinicou por 30 anos, diz: “Sou uma escritora.” Ela estreou na literatura aos 54 anos, em 1995, com o romance “Quarto de menina”. Garcia-Roza começou pouco depois, em 1996, aos 60 anos, com “O silêncio da chuva”.

A autora é ativa no Facebook, com textos curtos em que alia altas doses de sensibilidade e de qualidade literária. Nos últimos meses, como é natural, boa parte dos posts fala de Garcia-Roza: “Não desejo que nossa história termine sem fazer um agradecimento a meu marido pela sua grandeza, rara; pela escuta sempre a postos, pelo respeito a minha história, pela presença firme a meu lado; pelo amor servido em grandes e consistentes doses de afeto.”

Livia lamenta que o marido não tenha acompanhado o lançamento de “A última mulher” (“achei bárbaro, ele voltou com toda força”) e não saiba que o filme “O silêncio da chuva”, uma parceria de Globo Filmes e Imagem Filmes dirigida por Daniel Filho, está terminado e será lançado até o fim do ano. Num post, ela diz: “Ninguém sabe a hora que se chega ao mundo como também não sabemos a hora que nos despedimos dele. O importante é fazer valer esse intervalo, a que chamamos vida.”

Intervalo que Garcia-Roza e Livia sempre fizeram valer, em toda a sua intensidade.

Leia trecho inicial de "Eu sou um professor"

Na primavera de 36 nascem os gêmeos prematuros e univitelinos Luiz e Alfredo no Rio de Janeiro, que ainda era a capital da República. Era uma época de poucos recursos na medicina no que dizia respeito a atendimentos a prematuros. Havia que improvisar. Várias são as complicações que podem apresentar os bebês prematuros. Uma delas é a temperatura corporal. Na falta de incubadora, o pai dos meninos teve a ideia de encher garrafas de vidro com água quente, envolvidas em panos, para contornar os berços e aquecer os filhos. Eles eram tão pequenos que o enxoval permaneceu nas gavetas. Foram vestidos com as roupas do boneco de uma prima. Passado dois meses, apesar de toda a dedicação, só um deles vinga. Os pais então juntaram os nomes no sobrevivente de apenas um quilo. Diziam que ele cabia numa caixa de sapato. Terá sido Luiz ou o Alfredo que morreu? Questão que permaneceu fantasmática para Luiz Alfredo. Cedo a vida fez um buraco nele. Ele porta esse espanto. Essa interrogação calada. O enigma, que mais tarde ele vai perseguir nos romances policiais.