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Livro apresenta a equação poética de Charles Simic

Coletânea mostra como autor nascido na Sérvia e estabelecido nos EUA equilibra memórias traumáticas com humor, passado e presente
O sérvio radicado nos EUA Charles Simic Foto: Divulgalçao
O sérvio radicado nos EUA Charles Simic Foto: Divulgalçao

Chega ao Brasil a poesia de Charles Simic, autor nascido na Sérvia em 1935 e vivendo nos Estados Unidos desde 1954, onde se estabeleceu como um poeta, ensaísta, tradutor e editor de grande relevância cultural. Seu duplo pertencimento — linguístico e existencial — é fundamental para a compreensão do projeto poético de Simic, do qual temos uma breve amostra na coletânea “Meu anjo da guarda tem medo do escuro”.

Em primeiro lugar, é possível notar que as duas partes da vida de Simic estão sempre ligadas em sua poesia: em poemas como “A cidade”, “Terapia de vidas passadas” e “O morto desce do cadafalso”, para citar apenas alguns, as imagens da infância com restrições severas são postas lado a lado com as imagens de uma maturidade vivida em um contexto de abundância.

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A poesia de Simic trabalha no intervalo de suspensão entre um estado e outro, como nos primeiros versos de “Departamento de Reclamações”: “Onde você vai acabar dando as caras/ Num dia escuro de inverno/ Percorrendo as escadas rolantes vazias/ Em busca de alguém que lhe atenda/ Na velha loja empoeirada/ Prestes a fechar as portas para sempre”. Simic experimentou, ainda na infância, uma série de eventos históricos traumáticos — bombardeios, ocupação nazista, guerra civil. Muitos de seus poemas estão marcados pela vivência do exílio, uma história familiar que ele compartilha com milhões de outros refugiados e deslocados (sendo também a razão de fundo que explicaria por que seu “anjo da guarda tem medo do escuro”).

Simic, contudo, atua muitas vezes sobre essas memórias com um humor irônico. Afirma, por exemplo, fazendo referência a sua partida para os Estados Unidos, que Hitler e Stálin foram seus agentes de viagem. De sua cidade, Belgrado, afirma que carrega a dúbia distinção de ter sido bombardeada pelos nazistas em 1941, pelos Aliados em 1944 e pela Otan em 1999. Essa dimensão de sua experiência aparece sutilmente em um poema como “Leia o seu destino”: “Um mundo desaparecendo./ Pequenina rua,/ Você era tão estreita,/ Já tão imersa na sombra”. Volta aparecer anos depois no poema “Rabiscos no escuro”: “Um grito na rua./ Alguém se engalfinha com seus demônios./ Depois, a calma volta./ O vento desalinha as folhas”.

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A equação poética de Simic é sempre instável e, por isso, sempre instigante, enigmática: o humor contrasta com o sofrimento, que por sua vez gera dissonância com os elementos surrealistas e com a paisagem banal do cotidiano, e assim por diante. “Margaret copiava a receita de santos assados com cebolas de um velho livro de culinária”, escreve Simic em “O santo dormia no quarto com um pano molhado sobre os olhos”. A imagem poética para Simic geralmente é composta por um elemento caseiro (um livro de culinária, uma faca, um balde) e um elemento onírico ou fantástico (uma cidade que desaparece de repente, uma divindade que olha do alto), combinados por meio do acaso.

Capa de 'Meu anjo da guarda tem medo do escuro' Foto: Divulgação
Capa de 'Meu anjo da guarda tem medo do escuro' Foto: Divulgação

O olhar de Simic está sempre cindido entre um momento imediato de distração, o aqui e agora, e o passado arcaico, afastado. Esse mundo dividido diz respeito à sensação de que temos cada vez mais conhecimento sobre o concreto e cada vez menos sobre o abstrato (que é pouco “prático”, que “não serve para nada”). Simic é um poeta na linha de Dante: sua intenção é achar uma espécie de pedra filosofal que ofereça o conhecimento das coisas do mundo; ao mesmo tempo, reconhece que tem acesso a muito mais “informação” do que Dante, embora esteja seguro de um número bem mais reduzido de coisas. Sua poética, contudo, não se resume a uma filiação com o autor da “Divina Comédia”, pelo contrário: Simic é rico em ecos intertextuais e referências veladas, tendo sido influenciado majoritariamente por Emily Dickinson, Pablo Neruda, Joseph Cornell e Giorgio de Chirico.

Apesar de reunir 33 poemas das várias fases da produção de Simic, a coletânea poderia ter sido bem mais abrangente, levando em consideração tanto o volume das publicações de Simic (são mais de 30 livros, só de poesia) quanto a timidez do volume publicado aqui (75 páginas para os poemas, 25 páginas para o posfácio do tradutor). Além disso, os poemas estão soltos, sem indicação de ano e de qual livro foram retirados — informações imprescindíveis para apreciar um poeta que publica com regularidade há cinco décadas.

De qualquer modo, basta um único poema de Simic para reconhecer seu estilo e a potência de sua visão de mundo. A coletânea “Meu anjo da guarda tem medo do escuro” dá acesso a uma percepção artística da realidade (física e metafísica) que não recusa suas ambiguidades e suas violências, forçando a linguagem em direção a uma utópica convivência das diferenças.

* Kelvin Falcão Klein é professor da Escola de Letras da UniRio

“Meu anjo da guarda tem medo do escuro” Autor : Charles Simic. Editora: Todavia. Tradução: Ricardo Rizzo. Páginas : 112. Preço: R$ 59,90. Cotação: ótimo