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Livro inédito de James Joyce revela origens do clássico ‘Finnegans Wake’

‘Finn’s Hotel’ ensaia jogo com a linguagem que o escritor irlandês usaria de forma extraordinária em seu último romance
O escritor irlandês James Joyce Foto: Divulgação
O escritor irlandês James Joyce Foto: Divulgação

No prefácio de “Giacomo Joyce”(Iluminuras,1999), de James Joyce, o tradutor José Antonio Arantes conta que, em 1993, “Finn’s Hotel” deveria ter sido lançado pela Viking Press, mas Stephen Joyce, neto do escritor irlandês e administrador do seu espólio, não permitiu a publicação da obra, formada por excertos de “Finnegans Wake” descobertos por Danis Rose ao pesquisar os manuscritos do romance.

Desde aquela época, “Finn’s Hotel” gera controvérsias nos meios acadêmicos. Para o curador da Fundação James Joyce de Zurique, Fritz Senn, “‘Finn’s Hotel’ não é um livro de Joyce, é uma coleção dos primeiros rascunhos de ‘Finnegans Wake’. Já Danis Rose acredita que em algum momento Joyce quis publicá-los como um livreto”.

“Finn’s Hotel”, independentemente de ter pequenas anotações não aproveitadas por Joyce em “Finnegans Wake”, ou de ter sido concebido como um livro autônomo, é um mimo para os leitores e admiradores da obra de James Joyce, que agora a Companhia das Letras oferece na tradução de Caetano Galindo.

Quando se lê “Finn’s Hotel”, é, no entanto, inevitável compará-lo com “Finnegans Wake”. Os pequenos “épicos” do livro recém-lançado ensaiam muito timidamente uma brincadeira com a linguagem, que ganhará dimensões extraordinárias no “Wake”. Em “Finn’s Hotel”, Joyce não mistura 65 línguas, como o fez no seu último romance, mas explora aliterações, assonâncias e neologismos, que vão reaparecer mais tarde em “Finnegans Wake”, como se pode verificar no seguinte trecho de “A tale of a tub” (“Uma história de um tonel”): “where pious Kevin lives alone on an isle in the lake” (“onde pio vive Kevin solitário numa ínsula do lago”).

Há outras passagens, todavia, que dialogam efetivamente com o último romance de Joyce, como “Here’s Lettering You” (“Eis que te carto”), que nada mais é do que uma carta assinada por Anna Livia Plurabelle Earwicker, que será a futura heroína de “Finnegans Wake”, casada com Humphrey Chimpden Earwicker, e também autora de uma carta cujo conteúdo inocenta seu marido de um suposto crime. “The Staves of Memory” (“Bordões da memória”) vai se transformar, no “Wake”, no capítulo quatro do livro II: as quatro ondas irlandesas do conto serão, no livro seguinte, os quatro juízes que registram o sonho de H.C.E.

EDIÇÃO GANHA COM TRADUÇÃO

O conto intitulado “Here Comes Everybody” (“Homem comum enfim”) foi, sem a menor sombra de dúvida, reformulado e absorvido pelo segundo capítulo do livro I de “Finnegans Wake”, mesmo que Danis Rose afirme categoricamente que “esses episódios ‘bônus’ nunca foram absorvidos pelos textos posteriores de Joyce [...]”. Além disso, Kevin ou Kevineen, o personagem de alguns contos de “Finn’s Hotel”, como o já citado “A tale of a tub”, metamorfoseia-se, no Wake, em Shaun ou Kev, um dos filhos de H.C.E e Anna Livia.

“Finn’s Hotel” foi escrito em 1923, justamente quando Joyce teria começado a escrever “Finnegans Wake”. Em 11 de março de 1923, Joyce enviou uma carta para Harriet Weaver, sua mecenas, em que dizia: “Ontem escrevi duas páginas — a primeira desde o Sim final de ‘Ulisses’. [...] Il lupo perde il pelo ma non il vizio , dizem os italianos”. Segundo Richard Ellmann, essas duas páginas teriam sido inseridas de forma amplificada no final do capítulo 3, do livro II, do “Wake”. Passados alguns dias, em 23 de março de 1923, Joyce enviou outra carta a Weaver e, dessa vez, já lhe apresenta uma ideia concreta do que estava escrevendo: “eu tentarei lhe enviar a ‘exegese’ do episódio de Cila e Caríbdis antes de ir para o hospital”.

O título de um dos contos de “Finn’s Hotel” é “Issy and the Dragon” (“Seus encantos dela”, na tradução de Galindo), e permito-me aqui especular que esse título teria relações com o episódio de Cila e Caríbdis, citado por Joyce na carta enviada a Harriet Weaver. Lembro que Issy é uma das protagonistas do “Wake” e incorpora nesse romance muitas figuras mitológicas, entre elas Cila, uma bonita moça transformada em monstro marinho, numa das versões do mito. Caríbdis é também um monstro marinho feminino ou, quem sabe, um dragão, como Joyce, a meu ver, parece ter se referido a ele no título do conto.

“Finn’s Hotel” é uma pequena amostra do “Work in Progress”, como Joyce chamava seu novo romance ainda sem título, o qual daria origem, em 1939, ao exuberante “Finnegans Wake”. Joyce via cada capítulo do “Wake” como uma história independente, cada capítulo valeria por si só, de modo que o romance seria feito de pequenos (ou grandes) contos, os quais não apresentam títulos.

A edição ganha com a tradução humorada, embora bem pouco ortodoxa, de Galindo, mas perde por não ser bilíngue e por ter colocado juntos dois textos bastante diferentes entre si, “Finn’s Hotel” e o relato autobiográfico “Giacomo Joyce”, este já traduzido para o português por Paulo Leminski e José Arantes. Diria que os dois livros têm em comum apenas a concisão narrativa e o fato de Joyce tê-los abandonado, os quais foram “resgatados” posteriormente por Stanislaus Joyce e Danis Rose.

A Companhia das Letras poderia apostar no futuro numa edição juvenil da obra, aproveitando a leveza e a brevidade das narrativas, para que o jovem leitor possa conhecer Joyce e sua linguagem experimental.