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Livro inédito de Roberto Bolaño chega ao Brasil, com uma história inventada e perigosamente realista

Em ‘A literatura nazista na América’, o autor chileno arma um de seus jogos narrativos: uma enciclopédia fictícia de autores pró-Hitler
Roberto Bolaño Foto: El Mercúrio
Roberto Bolaño Foto: El Mercúrio

RIO - Uma enciclopédia carrega fatos históricos, teorias científicas e verbetes sobre personagens notáveis. “A literatura nazista na América”, do chileno Roberto Bolaño, poderia ser uma enciclopédia, se não fosse uma compilação totalmente inventada. Mas a literatura trata do que poderia ter sido: todos os simpatizantes do nazismo apresentados pelo autor poderiam ter existido. O texto contém a exata dose de verossimilhança capaz de fazer o leitor esquecer por breves momentos que aquelas pessoas não são reais.

A tradução é lançada no país 23 anos depois da publicação original. Mesmo sendo um dos primeiros livros do escritor, permanece assustadoramente atual. Especialmente considerando o contexto brasileiro: um intelectual, com passagens por clínicas psiquiátricas, que refuta filósofos como Voltaire, Rousseau, Hegel, Marx (claro) e elogiado “nos círculos católicos”. Poderia ser um blogueiro de extrema-direita que combate o comunismo pela internet, mas é um dos personagens da galeria de Bolaño. Luiz Fontaine da Souza, carioca, é um dos poucos brasileiros da coleção disposta no livro. Mesmo passando a vida no Rio de Janeiro, escreve romances que se passam em Novo Hamburgo, no Rio Grande do Sul, cidade fundada por alemães.

Vidas ilustres

Todos os personagens são escritores, poetas ou prosadores, o que remete à temática metalinguística de Bolaño. Suas biografias são entrelaçadas com a historiografia de sua produção literária. A primeira personagem é a argentina Edelmira Thompson de Mendiluce. Ela conhece Hitler em 1929 e lhe entrega um exemplar de luxo de “Martín Fierro”. “Hitler fica encantado. São versos peremptórios e que apontam para o futuro”. A passagem é risível para quem conhece o poema de José Hernández, sobre um gaúcho, naturalmente mestiço, que luta por liberdade.

Na ocasião, a família posa para uma fotografia ao lado do genocida. Anos mais tarde, a filha de Edelmira, Luz Mendiluce, exibe o retrato na sua sala. Na imagem, ela é um bebê no colo de Hitler. “Ela ainda podia sentir seus braços fortes e sua respiração cálida, por cima de sua cabeça” e reconhecia “que provavelmente aquele tenha sido um dos melhores momentos de sua vida”.

O livro recém lançado no Brasil Foto: Reprodução
O livro recém lançado no Brasil Foto: Reprodução

A família Mendiluce parece ser a ancestral de todos os escritores nazistas descritos. Não à toa são os primeiros personagens apresentados. Ricos, financiam outros escritores, bancam editoras e periódicos. Ao longo do livro, descobrimos outras figuras que contaram com o apoio da família — como Ítalo Schiaffino, mais fanático por futebol do que por suásticas. Não são poucos os personagens que participam de um círculo de poder que compactua com o regime, mas não necessariamente levantam a bandeira do arianismo. Bolaño mostra aqui a hipocrisia e os pequenos favores que banalizam o nazismo.

Influência de Borges

É inevitável a comparação com “Historia universal da infâmia” (1935), de Jorge Luis Borges. Tanto pelo formato enciclopédico, quanto pela preferência por personagens “infames”. Outra aproximação possível é com o conto “Pierre Menard, autor de Quixote”, também de Borges, em que o narrador faz uma leitura crítica do escritor que “recriou” o clássico de Cervantes. Nesse caso, a semelhança é por fazer da análise literária e da história da literatura tema para um enredo de ficção.

“A literatura nazista na América” pode ser lido como um conjunto de contos ou um romance. Como coletânea de narrativas curtas, é um bom livro. Com algum esforço pode se enxergar uma narrativa única — nesse caso, deixa a desejar. Mas, de todo modo, agrada quem já gosta de Bolaño.

Paula Sperb é jornalista e doutora em Letras pela UCS

“A literatura nazista na América” Autor: Roberto Bolaño Editora: Companhia das Letras Tradução: Rosa Freire D’Aguiar Páginas: 240 Preço: R$ 54,90 Cotação: Bom