Exclusivo para Assinantes
Cultura Livros

Livro relaciona 'tretas' literárias nos séculos XIX e XX a projeto de Brasil

Pesquisador César Braga-Pinto analisa amizades e inimizades nas classes letradas do país
Charge de 1886 mostra duelo entre o proprietário de 'O paiz' e o redator-chefe da 'Gazeta de notícias' Foto: Angelo Agostini / Acervo da Fundação Biblioteca Nacional
Charge de 1886 mostra duelo entre o proprietário de 'O paiz' e o redator-chefe da 'Gazeta de notícias' Foto: Angelo Agostini / Acervo da Fundação Biblioteca Nacional

RIO — As tretas entre escritores e suas panelinhas dizem muito sobre a construção do Brasil, nossa política, nossas relações afetivas, raciais e sociais. É o que o pesquisador César Braga-Pinto investiga em “A violência das letras — amizade e inimizade na literatura brasileira”. Professor de Literatura na Northwestern University, dos EUA, ele mapeia tanto os antagonismos quanto as cumplicidades nas classes letradas do país entre 1888 e 1940.

Os duelos armados que inflamaram nomes como Olavo Bilac e Raul Pompeia, a defesa de Nestor Vítor ao menosprezado Cruz e Sousa, ou ainda as disputas do modernismo, são o pano de fundo para analisar as contradições e hipocrisias do nosso projeto nacional.

Como a multiplicação de jornais no século XIX ajudou a destruir reputações na época?

Capa do livro "A violência nas letras", de César Braga-Pinto Foto: Reprodução
Capa do livro "A violência nas letras", de César Braga-Pinto Foto: Reprodução

Os principais jornais do século XIX continham uma seção chamada “Publicações a pedido”, que era, digamos, uma espécie de Facebook da época. Em geral traziam perfis de políticos ou anúncios, mas com a modernização da imprensa, começam a publicar desde poesia da pior qualidade até elogios mútuos ou ataques pessoais.

Com o aumento de grandes periódicos, essas seções se ampliaram e ficaram extremamente influentes. Criava-se assim um novo espaço para fofocas, fake news, perfis falsos e detrações de reputações.

E como essa prática era vista?

Havia quem argumentasse que ela oferecia voz àqueles que não tinham meios de denunciar um crime ou uma ofensa sofrida. O jornalismo parecia ser uma promessa democrática em que mais pessoas teriam não só acesso à informação, mas também espaço para expressar a própria opinião.

Ou seja, qualquer um podia ser jornalista. Porém, logo se viu, como se vê agora, que não era bem assim. O impacto do WhatsApp hoje nas eleições do Brasil e o caso do Cambridge Analytica na eleição de Trump nos EUA são provas de uma nova era em que o acesso à informação sem regulamentação deixa de ser uma promessa de liberdade e democracia, podendo tornar-se, na verdade, uma nova ameaça às minorias.

Qual era o lugar da cena literária nessa dinâmica de elogios e detrações?

Até certo ponto, servia para fortalecer os laços entre os membros da elite letrada e delinear as fronteiras dos grupos através de rituais de aceitação. O duelo, visto muitas vezes como uma consequência necessária das querelas no jornal, confirma essa função, num ritual em que se reitera a própria masculinidade do homem de letras.

Não se pode negar que muitos escritores se deleitavam com o privilégio de participar desse jogo, em que se procura confirmar também um ideal — branco e europeu — de civilização, em contraste com as brigas de rua e da capoeira, consideradas selvageria.

Como a difamação afetava os escritores?

O pesquisador e escritor César Braga-Pinto, Professor de Literatura na Northwestern University, nos EUA Foto: Divulgação / Agência O Globo
O pesquisador e escritor César Braga-Pinto, Professor de Literatura na Northwestern University, nos EUA Foto: Divulgação / Agência O Globo

Nos últimos decênios do século XIX, o poder da imprensa de macular as reputações começaria a incomodar escritores e homens de família, chegando a ser tematizado no romance de Aluízio de Azevedo, A condessa de Vésper (1882).

Além disso, nem todos escritores possuíam o mesmo “capital de honra”, sendo que uns se encontravam em posição social, racial ou mesmo sexual, mais vulneráveis à detração. Tal vulnerabilidade pode ser lida no “Emparedado”, de Cruz e Sousa, ou em sua leitura do conto “Sapo”, de Nestor Vitor, que narra a história de um homossexual e dos insultos que este ouve, ou imagina que ouve, ao caminhar pelas ruas.

Outro escritor, cuja trajetória ocupa um lugar central no livro é Raul Pompeia, por sua sexualidade ter estado sempre sob suspeita. Mas também por suas contradições, já que ele foi tanto vítima quanto propagador dessa violenta dinâmica de grupo.

Defendo, no livro, que o próprio "Ateneu" trata menos da formação do caráter, como tradicionalmente se tem considerado, do que da reputação maculada, da exposição à vergonha pública, e da violência da linguagem.

Que outras contradições podemos apontar em Pompeia?

Tendo sido um abolicionista, amigo e admirador de Luiz Gama, Pompeia se simpatizava com os marginais e excluídos, defendendo a injustiça da imprensa que muitas vezes destrói reputações de homens e mulheres das classes privilegiadas sem o compromisso de retratá-las quando se enganam. Por outro lado, ao defender a reputação do Brasil, contra às críticas dos jornais estrangeiros à escravidão no Brasil, ele acaba tomando o lado dos fazendeiros escravocratas.

Como o ideal de identidade nacional — branco, masculino e heterossexual — direcionou as reputações artísticas?

O livro começa por volta de 1888-1889 justamente porque a partir daí duas noções contraditórias devem ser assimiladas ao projeto nacional: o ideal republicano exige uma ideia de reciprocidade, mas apenas entre iguais. A abolição revela a presença, mais próxima do que se desejava, de um outro “irmão”, desconhecido, quase impossível de se imaginar.

No livro, essa tensão com o amigo-inimigo está representada pelo personagem do “Bom Crioulo”, de Adolfo Caminha. Ao mesmo tempo objeto de desejo e ameaça à nacionalidade, o corpo negro é o Adamastor na virada do século.

A falta de mulheres no livro é um caso típico em que a ausência diz tudo?

Acho que sim. Pois o livro se propõe como crítica à noção masculinista e exclusivista de amizade. Um pouco por conta dos exemplos disponíveis, a exclusão racial e, até certo ponto, de orientação sexual, ficou mais evidente em minha análise do que a de gênero. Pois não se imagina uma mulher escritora nas panelinhas do século XIX, como não se imaginou por muito tempo uma mulher na Academia Brasileira de Letras.

Em todo caso, com mais pesquisa, será sem dúvida reveladora a ampliação dos estudos das amizades entre mulheres e, também, entre homens e mulheres. Mas para tanto, é justamente o conceito de amizade (e de família) que deve ser reformulado.

Que mitos sobre o Brasil a análise de nossos afetos literários ajuda a desfazer?

A noção de cordialidade, tal qual elaborada por Sérgio Buarque de Holanda, pode passar pelo ódio, pela competição, pelo ressentimento. Porém, uma noção mais amena de cordialidade persistiu até pouco, como explicação da suposta diferença brasileira. Esse discurso não se sustenta mais. Gilberto Freyre, que tanto insistiu na democracia racial, vê o brasileiro como incapaz de amizades verdadeiras, apenas de “camaradagens fáceis”.

Desta maneira, reproduz uma ideia aristocrática de amizade à moda grega, em que as mulheres são excluídas e, provavelmente, todos os que não são brancos. A exclusão na história da sociabilidade literária não está dissociada do colonialismo, da herança escravocrata, etc.

Como vê os afetos e desafetos da literatura nacional atual?

As panelinhas e sociedades do elogio mútuo do século XIX nunca deixaram de estar presentes na vida literária nacional. Os círculos continuam pequenos, restritos. O mercado editorial com frequência repete a dinâmica da exclusão em nome de uma suposta qualidade estética dos laureados.

É preciso mais diversidade nos prêmios, que se contentam em premiar os mesmos, predominantemente brancos, muitas vezes publicados por uma mesma editora.

“A violência das letras — amizade e inimizade na literatura brasileira (1888-1940)”

Autor: César Braga-Pinto. Editora: Eduerj. Páginas: 496. Preço: R$ 58.