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Livro reúne escritos de terror de autores ligados à Academia Brasileira de Letras

'Medo imortal' traz 35 textos de 13 escritores, incluindo a carioca Júlia Lopes de Almeida
No traço de Lula Palomanes os autores Aluísio Azevedo, Humberto de Campos, Bernardo Guimarães, Afonso Arinos, Coelho Neto, Afonso Celso, Machado de Assis, Medeiros de Albuquerque, Álvares de Azevedo, Júlia lopes de Almeida, Inglês de Sousa, Fagundes Varela e João do Rio
Foto: Reprodução
No traço de Lula Palomanes os autores Aluísio Azevedo, Humberto de Campos, Bernardo Guimarães, Afonso Arinos, Coelho Neto, Afonso Celso, Machado de Assis, Medeiros de Albuquerque, Álvares de Azevedo, Júlia lopes de Almeida, Inglês de Sousa, Fagundes Varela e João do Rio Foto: Reprodução

SÃO PAULO — Ao examinar atentamente o grosso volume “Medo imortal” , que a editora Darkside acaba de lançar, o leitor vai perceber que há pelo menos uma discrepância ali. Entre os 13 autores selecionados para a coletânea de escritos de terror de membros e patronos da Academia Brasileira de Letras (ABL) , há uma intrusa: Júlia Lopes de Almeida (1862-1934), a única mulher do grupo.

Embora presente em várias reuniões embrionárias da ABL, a carioca acabou sendo vetada na formação da primeira turma de 40 imortais. A entidade adotara o modelo francês, que não admitia mulheres. A injustiça foi parcialmente reparada em 2017, quando um ciclo de palestras da ABL, chamado “Cadeira 41”, incluiu-a entre autores que poderiam ter entrado na instituição.

Pioneira entre as romancistas e escritoras de livros infantis no Brasil, Júlia é autora de seis contos que figuram em “Medo imortal”. O jornalista e escritor catarinense Romeu Martins, organizador do volume, conta que “descobriu” a autora ao pesquisar os primeiros anos do gênero gótico no Brasil.

— Meu queixo desabou quando li “Os porcos”, conto que ela escreveu para uma coletânea que lançou em 1903, “Ânsia eterna” — diz ele sobre a história da cabocla Umbelina, cuja gravidez indesejada tem um destino terrível.

A escritora carioca Júlia Lopes de Almeida (1862-1934), aqui no traço de Lula Palomanes, participou da criação da Academia Brasileira de letras, mas não pode ser eleita para a primeira turma da entidade Foto: Reprodução
A escritora carioca Júlia Lopes de Almeida (1862-1934), aqui no traço de Lula Palomanes, participou da criação da Academia Brasileira de letras, mas não pode ser eleita para a primeira turma da entidade Foto: Reprodução

Descobertas literárias

Martins conta que, em dezembro de 2017, ao esperar pelo tratamento de câncer da mãe em um hospital de Santa Catarina, mergulhou na leitura de uma outra antologia de terror, “Páginas de sombra”, de Bráulio Tavares. De volta à casa e ocupado com os cuidados médicos, começou a pesquisar outros autores brasileiros que se aventuraram pelo terror na virada do século XIX para o XX.

— Aos poucos, fui postando uma ou outra descoberta que ia fazendo no Facebook, sempre indicando um conto e contando um pouco da história de cada autor. Um por dia, durante praticamente uma semana — diz ele, que foi movido a montar a coletânea pela repercussão das publicações e pelos comentários em seu perfil.

Além de Júlia, “Medo imortal” reúne seis membros fundadores da Academia, três dos patronos escolhidos por eles e outros três acadêmicos eleitos nos primeiros anos da ABL: Machado de Assis, Álvares de Azevedo, Bernardo Guimarães, Fagundes Varela, Coelho Neto, Aluísio Azevedo, Afonso Celso, Inglês de Sousa, Medeiros e Albuquerque, Afonso Arinos, João do Rio e Humberto de Campos. Todos eles são retratados em caricaturas do artista carioca Lula Palomanes.

São 35 escritos, entre contos, uma novela e alguma poesia dos autores que inspiraram, fundaram e fizeram parte da ABL. Para justificar o recorte, Martins usa como referência o ano de criação da entidade, 1897, o mesmo em que foram lançados “Drácula”, de Bram Stocker; “O homem invisível” e a versão em folhetim de “A guerra dos mundos”, ambos de H.G. Wells; e o conto perdido “The noble eavesdropper”, de H.P. Lovecraft.

Panorama do terror

Nas palavras do organizador, o livro busca traçar um panorama dos primeiros cem anos de produção da literatura de horror no Brasil, à medida em que foi produzida entre a segunda metade do século XIX e a primeira do século XX: “A intenção é preencher o vazio deixado pela crítica acadêmica no Brasil, que, no século XX, optou por privilegiar um ideal literário que tivesse como missão construir uma identidade nacional”, escreve ele no prefácio do livro.

Machado de Assis, o 'Bruxo do Cosme Velho' no traço de Lula Palomanes, tem seis contos de terror incluídos em 'Medo imortal' Foto: Reprodução
Machado de Assis, o 'Bruxo do Cosme Velho' no traço de Lula Palomanes, tem seis contos de terror incluídos em 'Medo imortal' Foto: Reprodução

Há em “Medo imortal” trabalhos consagrados, como os contos “A igreja do diabo” e “A causa secreta”, de Machado de Assis, ou a novela “Noite na taverna”, famosa obra póstuma do escritor romântico Álvares de Azevedo. Martins diz que a ideia era escolher autores que trabalhavam no limite entre o terror e o sobrenatural, e que os escritos deviam “gerar inquietação”:

— Não tem como colocar o Machado de Assis em uma coletânea de terror e não colocar “A causa secreta”. Mas não poderia deixar de fora “Pai contra a mãe”, que foi compilado originalmente em “Relíquias da casa velha”, de 1906, e que trata dos horrores da escravidão.

Martins cita também o caso de “Demônios”, único conto do maranhense Aluísio Azevedo incluído na antologia. Publicado originalmente na forma de folhetins, em 1891, no jornal “Gazeta de Notícias”, foi reeditado em livro depois duas vezes. Em ambas, sofreu modificações que o tornaram mais ameno, suprimindo as menções à pratica da necrofilia.

— Especula-se que por ter entrado na carreira diplomática, o Aluísio Azevedo achava melhor não ter esse tipo de menção em seus escritos. Mas a versão que publicamos é a original, como foi escrita e publicada da primeira vez — garante Martins.

Ajuda acadêmica

Segundo o organizador, só foi possível incluir muitos dos textos e dos dados sobre eles graças ao trabalho das universidades brasileiras, que passaram a pesquisar a literatura de gênero no país:

— Sempre que possível, a gente menciona alguns desses trabalhos universitários, principalmente os produzidos pelo Grupo de Estudos do Gótico no Brasil, estabelecido desde 2014 na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ). É uma maneira de demonstrar os novos tempos da valorização da literatura de horror no Brasil.

Capa de 'Medo imortal' (Darkside), com organização de Romeu Martins Foto: Divulgação
Capa de 'Medo imortal' (Darkside), com organização de Romeu Martins Foto: Divulgação

“Medo imortal” .

Organizador: Romeu Martins. Editora: Darkside. Páginas: 464. Preço: R$ 59,90