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Livros relembram ataques de D. Pedro I a adversários na imprensa: 'O senhor há de ferver em pulgas'

'Dicionário da Independência' conta como o monarca usou pseudônimos, como 'Piolho Viajante', Duende, Anglo-Maníaco, Derrete Chumbo a Cacete para atingir opositores nos jornais
Dom Pedro como 'Piolho Viajante': Imperador usava pseudônimos para insultar adversários nos jornais da época Foto: Paula Taitelbaum / Divulgação
Dom Pedro como 'Piolho Viajante': Imperador usava pseudônimos para insultar adversários nos jornais da época Foto: Paula Taitelbaum / Divulgação

Imperador do Brasil entre 1822 e 1831, Dom Pedro I tinha o que podemos chamar de vida dupla. Embora criticasse a violência da imprensa em discursos oficiais, usava pseudônimos para atacar desafetos em textos publicados nos jornais da época. “O senhor há de ferver em pulgas”, escreveu certa vez em uma nota dirigida ao jornalista Soares Lisboa, xingando-o ainda de “testa-de-ferro dos atrapalhadores da causa brasílica”, “pedaço d’asno”, “pés de chumbo” e “bazófio”.

Para assinar seus insultos, Dom Pedro I lançou mão de cerca de 30 codinomes. Um deles, O Piolho Viajante, copiava o título de um grande sucesso editorial da época, escrito pelo português Policarpo Silva, sobre um piolho que percorre 72 cabeças relatando os vícios da sociedade lusa.

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A pouco conhecida verve satirista do imperador pode agora ser mais bem compreendida em dois lançamentos da editora Piu: “Dicionário da Independência”, de Eduardo Bueno, que monta um quebra-cabeças da separação do Brasil de Portugal por meio de 200 verbetes; e uma versão gratuita em e-book do próprio “O piolho viajante”, um fenômeno esquecido da língua portuguesa do século XIX, até então nunca lançado no Brasil.

— Os insultos e difamações que vemos hoje nas redes sociais são fichinha perto desses textos do Dom Pedro, que saíam em verdadeiros pasquins — diz Bueno, que dedicou um dos verbetes da obra aos pseudônimos do monarca. — Embora não tenha sido diagnosticado, ele era bipolar: perdia a cabeça muito rápido, tinha ataques de fúria e escrevia coisas violentas, sempre de forma cifrada. Mas as pessoas sabiam quem era O Piolho Viajante, e ele nunca fez questão de desmentir.

Blague e ameaça

Como mostra o “Dicionário da Independência”, os próprios pseudônimos (Duende, Anglo-Maníaco, Derrete Chumbo a Cacete) já davam pistas sobre a ilustre identidade secreta. No folclore, o duende é aquele que se materializa em todos os lugares. “O Sr. Redator (...) me perguntará naturalmente como eu soube destas notícias? Respondo-lhe do modo que acima refiro, que era correndo a cidade e esquadrinhando tudo, como é próprio a um... ‘Duende’”, escreve o imperador, em um misto de blague e ameaça.

Já O Piolho Viajante só pode mesmo ter sido uma referência ao best-seller de Policarpo Silva, publicado em livro em 1821 após uma carreira exitosa nos folhetins lusos. Mesmo sem edições no Brasil, ele circulava por aqui na época em exemplares importados de Portugal.

— Era um livro consagrado e amplamente lido — explica Bueno. — O que Pedro I queria insinuar ao escolher o Piolho? Que ele frequentava as cabeças de todo mundo, que lia os pensamentos. Ele estava dizendo: “Eu sei o que vocês têm em mente e posso desmascará-los.”

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A editora Paula Taitelbaum, casada com Bueno e fundadora da Piu, teve a ideia de complementar o “Dicionário da Independência” com uma inédita edição brasileira de “O piolho viajante” após ilustrar o verbete sobre os pseudônimos. O e-book pode ser baixado gratuitamente nas plataformas Amazon, Google Play, Apple e Kobo.

— Não nos sentimos no direito de vender o livro, que está em domínio público — diz a editora. — A ideia era complementar o “Dicionário” com essa obra que fez tanto sucesso e que hoje ninguém conhece.

Seguindo o estilo dos romances picarescos do século XVIII e XIX, como “Cândido” e “As viagens de Gulliver”, “O piolho viajante” comenta com acidez os costumes de seu tempo. O narrador impiedoso pula de cabeça em cabeça, conhecendo poetas, estudantes, boticários, lavadeiras e vasto elenco. Os alvos, porém, são figuras bem conhecidas da sociedade portuguesa da época.

“Sou piolho, mas o meu espírito é verdadeiro”, escreve o narrador. “Não sou capaz de lisonjear e também incapaz sou de levantar testemunhos. Sou um verdadeiro e hábil retratista”. A leitura inspira um divertido exercício de imaginação sobre o teor do que o piolho diria se pousasse, nos dias de hoje, nas cabeças de algumas autoridades pelo Brasil afora.

“Dicionário da Independência — 200 anos em 200 verbetes”

Autor: Eduardo Bueno. Ilustrações: Paula Taitelbaum. Páginas: 144 páginas. Preço: R$ 53.

“O piolho  viajante”

Autor: Antônio Manuel Policarpo da Silva. Capa: Paula Taitelbaum. Páginas: 144. Preço: Formato e-book grátis nas plataformas Amazon, Google Play, Apple e Kobo