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Luci Collin explora banal absurdo nos contos de 'Dedos impermitidos'

Quebra de narrativa e detalhes sem a menor importância dão tom humorado às histórias, e absurdo aos contos, que às vezes lembram as conversas das personagens do romeno naturalizado francês Eugène Ionesco ou os textos em prosa e verso do russo Daniil Kharms.
A escritora Luci Collin Foto: Gilberto José de Camargo Júnior
A escritora Luci Collin Foto: Gilberto José de Camargo Júnior

Os contos que compõem “Dedos impermitidos”, de Luci Collin, são uma espécie de matriosca. Dentro de cada um deles existem outros e dentro destes outros mais. Isso porque, para relatar a história principal, se é que existe alguma, a escritora faz uma série de digressões que a levam para outras narrativas; ou ela acaba se perdendo, propositalmente, é claro, em detalhes. Em “Dias contados”, por exemplo, a história é sobre a senhora T., mas, de repente, o leitor se vê diante de um lago, que, a princípio, nada tem a ver com a tal senhora, e, em meio a reflexões mais profundas, a narradora lembra que “Minha amiga Bernadete Lúcia Cruz morreu de um trombo desgovernado. Não era amiga de infância. Na verdade, não era amiga, era apensas colega de trabalho. Não fui ao velório. Fiquei sabendo apenas doze dias após”.

A quebra de narrativa e os detalhes sem a menor importância dão o tom humorado e absurdo aos contos, que às vezes lembram as conversas das personagens do romeno naturalizado francês Eugène Ionesco ou os textos em prosa e verso do russo Daniil Kharms.

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Os narradores dos contos fazem questão de informar o nome de todas as pessoas que citam, como se ele nos dissesse alguma coisa de relevante; mais uma vez são os detalhes que desviam o leitor do enredo central. O nome das personagens, por isso mesmo, é escolhido a dedo: Sr. Arnoldo Genésio de Lima, conhecido por Seu Gene, como a narradora faz questão de enfatizar; tia Tilde ou Clementildes, irmã da mãe da protagonista, chamada Josinaura; as irmãs gêmeas Inacinha e Umbilina, esta conhecida por Lina.

“Prontidão” já começa com uma lista de nomes, acompanhados de adjetivos: “Minha doce e singela Bernardina meu adorável e insigne Josué minha gentil e querida Dora Elisa meu magnífico e invulgar Luiz Renan minha bela e vaporosa Dilcemara [...]”. Em seguida, a narradora lança mão de frases prontas e clichês como “dinheiro NÃO compra alegria”, “É de pequenino que se torce o pepino” ou “não se pode agradar gregos e troianos”. Os discursos irrefletidos, de ontem e de hoje no Brasil, também não escapam a Collin: “Os comunistas foram todos dizimados erradicados vencidos soterrados calcinados. Era gente perigosíssima. Infestaram o País por um tempo, mas depois sossegaram, felizmente. Levaram um corretivo, bom pra aprender. Na nossa família nunca teve! Graçasadeus”.

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Assim como outros escritores absurdistas, Luci Collin parece colocar a linguagem em xeque. Em “Divinatório”, lê-se: “o que resta de seu alfabeto são letras desemparelhadas”, as quais tentam formar um sentido que é “tão precário e desimportante como nós as histórias que construímos sobre nós mesmos”.

Collin nos joga na banalidade do cotidiano e, como diria Ionesco, “nada surpreende mais do que a banalidade; o ‘surreal’ está aí, ao nosso alcance, na nossa conversa diária”, a qual a escritora brasileira faz questão de registrar.

Nem mesmo a biografia de Jonathan Swift, recontada em “O deão não rasteja”, escapa das platitudes. É assim que Collin descreve o nascimento do grande escritor: “Menino! Deus seja Louvado! Amém. Perfeitinho. Enrola ele, Tonya. Limpa primeiro. E deixa que chore bastante que é bom para fortificar o peito”.

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A linguagem, diria, é a grande protagonista desses contos saborosos. A escritora explora a oralidade, ora num registro contemporâneo — “Pro Valdo ela nunca fala de chinelo. E o pai num rela um dedo naquele lazarento. A pequena eles mima que dá até nojo” —, ora em um registro arcaico — “Sr. Barlett: Ora essa, que maçada! Visitar-me-á às 10:00, exatamente. Foi-se uma manhã de trabalho. Algo inconveniente esse senhor que marcou a entrevista justo hoje”.

Outra característica é a paródia de estilos. Em “Quod fidelitas est fidelis”, Collin reproduz a linguagem da academia em uma palestra. A escritora brinca também com pontuação e diferentes tipos de letras, alguns ilegíveis, como se fossem hieróglifos, dos quais o que resta, como se lê, é “este risco apenas”, “o significado a ser decidido” ou “a essência mágica da coisa num espaço de encantamento”.

Capa de "Dedos impermitidos" Foto: Reprodução
Capa de "Dedos impermitidos" Foto: Reprodução


"Dedos impermitidos"
Autora:
Luci Collin. Editora: Iluminuras. Páginas: 120. Preço: R$ 42. Cotação: Ótimo.

Dirce Waltrick do Amarante é autora, entre outros, de “Minha pequena Irlanda” (Cultura e Barbárie)