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Machado de Assis divide torcidas nas redes e vira ícone da 'zoeira' com Gretchen e Nazaré Tedesco

Autor é redescoberto por uma nova geração por meio dos memes, das tretas e dos debates infinitos da web
Machado de Assis em meme nas redes Foto: O Globo
Machado de Assis em meme nas redes Foto: O Globo

RIO — Conhecido por abordar a literatura de forma bem-humorada em sua conta no TikTok (@patzzic), o streamer Patzzic descobriu recentemente a força de Machado de Assis nas redes sociais. Sempre que publica um vídeo sobre o Bruxo do Cosme Velho, sua audiência explode. No final de novembro, ele viralizou ao resgatar uma velha fofoca de que o escritor teria tido um caso extraconjugal com Georgiana, mulher de outro nome canônico da literatura brasileira, José de Alencar. Era para ser apenas uma brincadeira despretensiosa, mas acabou rendendo quase 4 milhões de visualizações e muitos comentários exaltados de alguns de seus 53 mil seguidores.

Gambito do Bruxo: O que a série do Netflix e Machado de Assis têm em comum

Para o booktoker, ficou claro que existe um “impacto digital machadiano”. E as menções ao autor na internet ao longo de 2021 lhe dão razão. O Bruxo tem sido uma maneira fácil de gerar o que os mais íntimos com a comunicação digital chamam de “engajamento”. Suas pautas mobilizam fãs, haters ou simples curiosos. Sua figura também é usada em memes e motiva “tretas” de todos os tipos, literárias ou não. No Twitter, o ano começou com o influencer Felipe Neto causando revolta ao questionar o ensino de Machado nas escolas . E está terminando com os tuiteiros debatendo se o autor tinha “sotaque carioca” (sim, isso foi uma polêmica).

— Sempre que alguém menciona negativamente a obra machadiana, surge um exército de internautas disposto a comprar briga em defesa do autor — relata Patzzic. — Acho que é por isso que os posts sobre ele dão tão certo. Sinto que as pessoas têm um afeto quase familiar com tudo o que se associa à obra de Machado. E, quando a gente se sente íntimo de algo, tendemos a proteger, a reconhecer o valor com muita intensidade.

Machado de Assis em meme nas redes Foto: Reprodução
Machado de Assis em meme nas redes Foto: Reprodução

Divisão em torcidas

O tema “Machado” tem esse poder de mobilizar e dividir torcidas, o que tem tudo a ver com o ambiente das redes sociais. Quem nunca quis dar o seu pitaco no infinito debate “Capitu traiu Bentinho?” — que, aliás, foi recorrente no Twitter em 2021. Em setembro, u ma matéria do GLOBO sobre o livro “O código Machado de Assis” , que busca comprovar “juridicamente” a existência de um caso extraconjugal em “Dom Casmurro”, fez mais uma vez a treta voltar à tona.

Segundo o autor de literatura afrofuturista e pesquisador Alê Santos, que escreveu um dos posfácios de uma edição de “Memórias póstumas de Brás Cubas” publicada pela Antofágica em 2019, as redes ampliaram o universo em torno de Machado. Questões sociais, políticas e raciais ganharam um peso ainda maior.

Em 2019, a ação “Machado de Assis real” , criada pela Faculdade Zumbi dos Palmares, recriou uma imagem clássica do autor, corrigindo o processo de embranquecimento feito por seus contemporâneos. A campanha ganhou tração nas redes sociais. No mesmo ano, uma foto até então desconhecida de Machado, em que ele aparece muito mais negro, também viralizou.

— Existe uma geração que está redescobrindo Machado não necessariamente pela escola, mas pelas discussões nas redes sociais — diz Santos. — São debates que vão além dos seus livros e trazem o espírito da internet, como memes ou threads no Twitter. Isso dá uma nova energia para os estudos sobre o autor e também gera demandas para levar as mesmas discussões a outras linguagens, como podcasts, documentários e séries de TV.

Entre Gretchen e Nazaré

O que Machado de Assis tem em comum com Gretchen e Nazaré Tedesco? Assim como a cantora de “Conga, Conga, Conga” e a vilã de “Nossa Senhora do destino”, o Bruxo virou uma infinita fonte de memes. Segundo o pesquisador Eloy Vieira, estes três personagens estão ligados na cultura digital brasileira por um espírito tipicamente brasileiro: o da zoeira.

— Eles são símbolo de um humor de autocomiseração que tem muito a ver com a nossa identidade nacional —diz Vieira, autor da tese “Quando a telenovela vira meme: como a Zuera e o Melodrama se articulam a partir dos memes da reprise de Avenida Brasil”, que analisa as relações entre cultura de massa e cultura digital.

Machado de Assis: inspiração para memes e 'matriz' da zuera Foto: Reprodução
Machado de Assis: inspiração para memes e 'matriz' da zuera Foto: Reprodução

O pesquisador vai além. Para ele, Machado é o fundador de uma certa autoironia brasileira, que foi evoluindo dos clássicos até os memes contemporâneos. Isso não significa, é claro, que os produtores de conteúdo atuais tenham bebido diretamente na matriz (o Bruxo e seus livros), ou que estejam conscientes de carregar este humor peculiar.

— É algo que ficou na cultura e foi passando, de referência em referência — diz ele. — Como sempre, na internet o que interessa é como as pessoas estão se reapropriando de tudo isso. É assim que funciona a cultura do meme.

Entre todas as polêmicas recentes em torno de Machado, Vieira vê a do “sotaque” como a mais representativa. Tudo começou em novembro, quando um usuário no Twitter se perguntou se o autor falava em carioquês. Parece algo óbvio, já que o Bruxo nasceu e morreu no Rio de Janeiro, mas não para os usuários das redes sociais, que passaram dias em cima da questão, tuitando insights ou simulando um possível sotaque antigo do escritor em vídeos no TikTok. Até o Twitter oficial da prefeitura do Rio entrou na brincadeira.

— Acho que rendeu tanto porque Machado é uma referência que mesmo quem não conhece “conhece”. Também porque foi uma sacada boba, mas sobre algo que ninguém nunca pensa, então criou uma sensação de novidade nas ideias — acredita o antropólogo Leandro Durazzo, o autor do tuíte original, que cresceu em Santos e tem sotaque paulista.

Alê Santos reconhece que essa presença de Machado nas redes se dá, muitas vezes, em uma esfera extraliterária. Ela não substitui a relação com os livros, mas pode se somar a ela.

— Essa vivência digital tem uma função muito diferente da dos livros — diz Santos. — Não dá para falar em “substituição”, mas é fato que, até pelo ambiente aflorado da internet, incentiva muito mais a participação entre os jovens.