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Margareth Dalcolmo abre sua biblioteca de 6 mil livros: 'Eles são minha âncora em momentos difíceis'

Médica tem mais de 6 mil livros em casa, incluindo títulos de autores portugueses, hispano-americanos e franceses, além de biografias e obras sobre a história das epidemias
A médica Margareth Dalcolmo em sua biblioteca de mais de 6 mil livros Foto: Leo Martins / Agência O Globo
A médica Margareth Dalcolmo em sua biblioteca de mais de 6 mil livros Foto: Leo Martins / Agência O Globo

Ao chegar em sua casa no Rio, após o enterro da mãe, em Vitória (ES), em 2019, Margareth Dalcolmo foi direto para a biblioteca, à procura de “Uma morte muito suave”, de Simone de Beauvoir , filósofa francesa que ela lê, no original, desde jovem. No livro, de 1964, Beauvoir narra a perda da mãe, vitimada por um câncer e uma fratura no fêmur. A mãe de Dalcolmo também fraturou o fêmur. A pesquisadora da Fiocruz, que se notabilizou por suas intervenções na imprensa desde o início da pandemia, deixa escapar algumas lágrimas ao recordar essa história, ilustrativa de sua relação afetuosa com os livros.

— Os livros são minha âncora em momentos difíceis — diz ela. — Aprendi a ler antes de entrar na escola e era muito introvertida. A leitura era minha companhia. Minhas irmãs iam nadar no Fluminense e eu ficava lendo. Era nerd. Até hoje não sei andar de bicicleta.

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Quem acompanhas as colunas de Dalcolmo no GLOBO , às terças-feiras, já conhece o amor da médica pelos livros. Nos 81 textos publicados entre 7 de abril de 2020 e 2 de novembro de 2021, reunidos no livro “Um tempo para não esquecer” (Bazar do Tempo), ela citou mais de 70 autores: Homero, Santo Agostinho, Shakespeare , Albert Camus , Sérgio Buarque de Hollanda etc. Dalcolmo recorre a autores para aprofundar suas reflexões sobre a pandemia e o luto e até para combater negacionistas. “Nietzsche, uma vez mais tem razão, quando afirma que ‘resolver tapar os ouvidos aos mais válidos argumentos contrários pode revelar caráter forte, porém igualmente pode significar a vontade levada até a estupidez’”, escreveu em 8 de setembro de 2020. Tanto nos textos quando na conversa com o GLOBO, ela cita os autores com reverência e usa adjetivos como “grande” (Petrarca, Lima Barreto , Elie Wiesel ) e “iluminado” ( Vargas Llosa , Yourcenar, Beauvoir).

Margareth Dalcolmo aproveita as brechas. Deixa alguns livros no carro para ler no trânsito. O motorista acha graça. Na faculdade, nos intervalos dos plantões, lia “A montanha mágica”, de Thomas Mann, catatau de 800 páginas que se passa em um sanatório de tuberculosos na Suíça. A leitura a influenciou a abraçar a pneumologia, sua especialidade. Ela assina um texto sobre “A montanha mágica” em “Este livro mudou a minha vida”, título organizado por José Roberto de Castro Neves a ser lançado pela Nova Fronteira em julho. Outra obra que influenciou suas escolhas profissionais foi “A morte de Ivan Ilitch”, novelinha de Tolstói que não chega a uma centena de páginas. O juiz Ivan Ilitch é acometido por uma doença nos rins que o faz definhar até a morte. Os médicos mentem para ele, dão-lhe falsas esperanças e mal ouvem suas queixas antes de fechar o diagnóstico.

— Indico esse livro como uma tarefa para todo mundo que quer estudar medicina. Digo: “Leia com atenção para aprender tudo o que um médico não deve fazer” — conta.

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Dalcolmo estima ter mais de 6 mil livros. Na casa, há duas bibliotecas: a dela e a do marido, Candido Mendes de Almeida, imortal da Academia Brasileira de Letras . Ela brinca que eles precisam de “passaporte” para visitar as bibliotecas um do outro. A pesquisadora divide seus livros por assunto. Numa imensa estante de peroba, herança familiar, há espaço para escritores brasileiros, portugueses, hispano-americanos e franceses, como Roland Barthes , cujos livros ela ganhou de presente de sua comadre, a escritora Ana Maria Machado . Dalcolmo fala inglês, espanhol e francês e, quando pode, prefere ler os livros no idioma original. Há uma estante inteira e mais três prateleiras recheadas de biografia e uma infinidade de títulos sobre a história das epidemias. Além de livros médicos, é claro.

— Ando gostando cada vez mais de história das epidemias. É a história do homem — diz. — Biografias são muito boas para entendermos a história. Lendo uma biografia do Hernán Cortez (navegador do século XVI) , por exemplo, você entende como foi a dominação do México pelos espanhóis. A biografia de Marguerite Yourcenar escrita por Josyane Savigneau é maravilhosa!

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Ainda menina, Dalcolmo queria ser diplomata. Tinha um mapa-múndi no quarto e afixava tachinhas nos países sobre os quais lia. Após ler o poema “Vou-me embora pra Pasárgada”, de Manuel Bandeira, decidiu que conheceria a cidade iraniana. E conheceu mesmo, embora afirme que não há muito para se ver por lá além do túmulo de Ciro, o imperador persa. Dalcolmo já rodou o mundo. Nas viagens, conheceu alguns prêmios Nobel de Literatura, como Vargas Llosa, José Saramago (“bem-humoradíssimo”) e Wole Soyinka , primeiro africano a ganhar o prêmio, que lhe confirmou que, sim, escrever é prazeroso, mas também dói. Também trocou ideia com o Nobel da Paz Desmund Tutu . Quando foi ao Iêmen, em 2009, resolveu ir atrás do local onde vivera o poeta francês Arthur Rimbaud.

— Foi uma aventura! Depois de andar por Áden toda, cheguei a um bairro e, de repente, veio o choque: vi um letreiro vermelho indicando o local onde ele morou. Só que estava escrito “Rambow”! Quase morri do coração — conta.

Admiradora de Pedro Nava

Autora de mais de uma centena de artigos científicos e 16 capítulos em livros médicos (entregou o 17º na semana passada), Dalcolmo sempre gostou de escrever e cogita exercitar ainda mais sua veia memorialística.

— Gostaria de escrever um relato mais pessoal sobre esse período da pandemia.

Não por acaso, um dos autores mais citados por ela é Pedro Nava, que também era médico e descreveu o Rio tomado pela gripe espanhola em “Chão de ferro”. Dalcolmo tem público leitor garantido. Pouco antes de conversar com o GLOBO, ela recebera um Zé Gotinha tricotado por uma fã. Lançado em dezembro, “Um tempo para não esquecer” já esgotou a primeira tiragem de 4 mil exemplares. Só no lançamento carioca, em 8 de dezembro, na Travessa do Leblon, ela assinou 430 livros. Neste sábado, haverá sessão de autógrafos na Janela Livraria. Também estão marcados lançamentos em Recife, Salvador e Brasília.

Capa de "Um tempo para não esquecer", coletânea dos textos de Margareth Dalcolmo no GLOBO publicada pela Bazar do Tempo Foto: Reprodução / Divulgação
Capa de "Um tempo para não esquecer", coletânea dos textos de Margareth Dalcolmo no GLOBO publicada pela Bazar do Tempo Foto: Reprodução / Divulgação

Serviço:

"Um tempo para não esquecer: a visão da ciência no enfrentamento da pandemia do coronavírus e o futuro da saúde"

Autora: Margareth Dalcolmo. Editora: Bazar do Tempo. Páginas: 192. Preço: R$ 52.