Cultura Livros

'Mário de Andrade por ele mesmo' apresenta cartografia de uma profunda amizade

Obra de Paulo Duarte, que ganha nova edição, traça trajetória do autor modernista com quem dividiu um projeto intelectual e social para o país
Mário de Andrade Foto: Divulgação
Mário de Andrade Foto: Divulgação

Quando Paulo Duarte concebeu e publicou pela primeira vez “Mário de Andrade por ele mesmo”, em 1971, dois fatos históricos, como agora, pontuavam o seu caminho: a badalada Semana de Arte Moderna estava prestes a completar 50 anos de sua realização, no Theatro Municipal de São Paulo, e o seu grande amigo, Mário de Andrade, havia desaparecido (fisicamente) do cenário cultural brasileiro havia 26.

Hoje só se compreende melhor um fato e outro com a leitura atenta da nova edição dessa importante obra, revestida de caráter seminal, que, além de registrar a dinâmica epistolar de uma intensa relação de amizade, retrata os bastidores da criação do ousado Departamento de Cultura e Recreação, embrião da atual Secretaria Municipal de Cultura, e a agitada cena política na turbulenta década de 1930, antessala para a implantação do Estado Novo ou início da era Getúlio Vargas — os anos que abalaram profundamente o país, sobretudo a vida paulistana.

Alan Pauls: 'É bom amar Caetano e Roberto Carlos', diz escritor argentino, que lança 'A metade fantasma'

Documento vivo

Paulo Duarte, intelectual refinado, construiu um livro que é um documento vivo, informativo, contaminado pela saudade, sobre um amigo que conhecia de forma profunda. Vivendo uma vida de altos e baixos, até sua morte, em 1945, perto dos 52 anos, Mário de Andrade, nas cartas (muitas vezes Duarte nem sempre as conseguia responder), se despe de todos os pudores para dar narrativas sobre doenças, traições, inimizades, o amor pela mãe, e, acima de tudo, para falar de si, do seu processo literário, do voluntário “exílio” no Rio de Janeiro ou mesmo sobre o medo de morrer.

O livro, em nova e caprichada edição, traça certa cartografia de Mário de Andrade, às vezes até desigual, mas ao mesmo tempo reproduz um dos melhores traços biográficos a respeito do celebrado autor de “Macunaíma”. Ele próprio um “macunaímico” incurável, por sua natureza irreverente, Mário também é o amigo leal de Paulo Duarte, com quem troca e recebe confidências. Este, por sua vez, monta a história epistolar de ambos, mas sem cair no primarismo dos enfadonhos livros de correspondências, evitando que estas se transformem em algo documental ao excesso.

Víktor Eroféiev: 'Na Rússia, a esperança é a primeira a morrer', diz escritor

Aqui não é o caso. Nos textos enfeixados que precedem as próprias cartas, comentadas e recheadas de notas elucidativas, Duarte divulga cinco textos/estudos que são verdadeiros retratos fiéis de ambos, incluindo Sérgio Milliet e Rubens Borba de Moraes — destaques para os de número 3, “Departamento de Cultura, vida e morte de Mário de Andrade”, e o 5, “Paixão de Mário de Andrade”, além do prefácio de Antonio Candido.

Ou seja, “Mário de Andrade por ele mesmo” é, de fato, um tratado sobre a comunhão de uma “saudade íntima”, entre dois homens que comungam de sentimentos mútuos de transformação social, semente da ideia arrojada de modernidade plantada em 1922 — e decantada na prosa, pintura, música e verso.

Nos passos de um 'turista aprendiz': as viagens de Mário de Andrade pelo Brasil

Mário e Paulo deram muito de si, como intelectuais e escritores, ou como homens essencialmente públicos que eram e se tornaram, para dotar a cidade São Paulo de instrumentos culturais eficientes e que atendessem à população. Ambos sonharam alto. A ditadura do Estado Novo apresentou aos dois uma dura realidade: para Mário, a demissão sumária; para Paulo, a perseguição política, a prisão, a fuga do país. “O Departamento é meu túmulo”, chegou a declarar em carta um melancólico Mário de Andrade, sem jamais conseguir levantar-se do grande tombo da decepção e da injustiça a que fora submetido. Lembraria, não poucas vezes, com saudosismo e mágoa, dos tempos em que se considerava “um homem feliz”.

Tom Farias é jornalista e escritor

81tnW04j3GL.jpg

"Mário de Andrade por ele mesmo"
Autor:
Paulo Duarte. Editora: Todavia. Páginas: 576. Preço : R$ 99,90. Cotação: ótimo.