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Mary Gaitskill: 'Deixamos de privilegiar o desejo masculino para privilegiar o medo feminino'

Escritora americana problematiza o #MeToo em livro narrado do ponto de vista de um editor que caiu em desgraça após ser acusado de assédio
Mary Gaitskill e cena do filme "Secretária", baseada em seu conto "Mau comportamento" Foto: Divulgação
Mary Gaitskill e cena do filme "Secretária", baseada em seu conto "Mau comportamento" Foto: Divulgação

Em 1988, Mary Gaitskill escandalizou a cena literária nova-iorquina com “Mau comportamento”, uma reunião de contos cheia de personagens femininas que se envolvem com drogas, sadomasoquismo e trabalho sexual. Um deles, “Secretária”, inspirou o filme com Maggie Gyllenhaal, lançado em 2002. O livro, porém, permaneceu inédito por aqui, mas chega às livrarias acompanhado de um outro volume assinado por Gaitskill que reúne o ensaio “A dificuldade de seguir as regras”, de 1994, e a novela “Isso é prazer”, de 2019.

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No ensaio, Gaitskill critica a imposição de regras à vida sexual em detrimento do ensino da responsabilidade. Na novela, ela problematiza o #MeToo ao contar a história de Quinn, um poderoso editor que cai em desgraça após anos de comentários maliciosos, toques inapropriados e até o envio de um vídeo pornográfico a uma subordinada. Em entrevista ao GLOBO, Gaitskill critica a “nova ortodoxia sexual, em que não há espaço para a paixão e o flerte”, e explica por que acha que deixamos de privilegiar o desejo masculino para privilegiar o medo feminino.

O que te atrai em temas como prostituição e política sexual?

Quando escrevi “Mau comportamento”, nos anos 1980, eu era muito jovem e não estava pensando em termos de cultura ou política sexual. Eu era solitária, e o mundo era um quebra-cabeças para mim. Viver em Nova York era caro e conhecia pessoas que se prostituíam. Eu mesma fiz isso. Estava tentando entender as coisas e o sexo estava ali, como uma oportunidade de conexão com outras pessoas. Se é que isso faz sentido.

Acredita que obras como “Isso é prazer” podem nos ajudar a entender as políticas sexuais do nosso tempo?

Não sei (risos) . Na época de “Mau comportamento”, eu não acompanhava as notícias. Quando escrevi o ensaio, aos 38 anos, já conseguia pagar o aluguel e comecei a me informar e achar que também podia ter opiniões. Descobri que o mundo era mais maluco do que eu imaginava. Algumas mulheres diziam que se não existissem regras escritas em pedra, haveria só caos e estupro. Outras acham que as mulheres precisavam se defender e derrubar assediadores no soco. Quantas conseguem fazer isso? Parecia que ninguém conseguia pensar por conta própria ou assumir responsabilidade.

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Não acha que a discussão sobre consentimento evoluiu entre a publicação do ensaio, em 1994, e a de “Isso é prazer”, em 2019?

Está sendo introduzida uma nova ortodoxia sexual, em que não há espaço para a paixão e o flerte. É claro que, por mais liberada que seja uma sociedade, é preciso ter etiqueta e respeito na hora de abordar uma pessoa. Mas tudo ficou muito rígido. Deixamos de privilegiar o desejo masculino para privilegiar o medo feminino. Espero que isso tudo ensine os rapazes a serem mais sensíveis e menos agressivos e as garotas a dizerem o que querem e o que não querem.

Como assim deixamos de privilegiar o desejo masculino para privilegiar o medo feminino?

Na adolescência, fui ensinada que era minha responsabilidade controlar os meninos. Se eu ficasse sozinha com um rapaz e alguma coisa acontecesse, a culpa era minha. Além dessa pressão, o desejo da mulher não era reconhecido. E continua não sendo. O que mudou é que agora o rapaz tem que perguntar “posso fazer isso?”, como se tudo o que ele fizesse fosse ser mal recebido sem uma autorização específica da garota. Isso é privilegiar o medo dela. É claro que o medo conta, porque as garotas são mais vulneráveis. Vai demorar para alguma coisa acontecer se todo mundo precisar pedir permissão o tempo todo.

Você não tem receio de ser acusada de defender o privilégio masculino?

Tenho, sim. Uma pessoa escreveu sobre “Isso é prazer” na internet e disse que eu estava do lado do assassino. Ele não matou ninguém, e nem eu estou completamente do lado dele. Quinn é baseado em alguém que eu conheço, que dizia coisas inapropriadas e tocava as pessoas, mas não abusou de ninguém. Recebeu várias reclamações, mas foi arrogante. Ele perdeu o emprego e achei justo. Depois fizeram uma petição ameaçando boicotar qualquer empresa que o contratasse. Aí já é demais. Por que destruir a vida dele?

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O que você acha dos pedidos de boicote a obras de artistas acusados de abuso sexual como Roman Polanski e Woody Allen?

Polanski estuprou uma menor de idade e devia ter ido para a cadeia. Na época, as pessoas diziam “ah, mas ele é um grande cineasta”. Eu também adorava os filmes deles, mas fiquei com tanta raiva que deixei de assistir. Isso não quer dizer que eu ache que todo mundo deva fazer o mesmo. Quem sou eu para dizer isso? Boicotar o trabalho dele é ridículo. Ele deveria ter ido para a cadeia.

Por que “Isso é prazer” não dá voz às vítimas?

Foi uma escolha. Na época, estávamos ouvindo as vítimas constantemente. Achei que não teria nada a acrescentar e que seria mais interessante conhecer o ponto de vista de outras pessoas, especialmente de uma mulher que é amiga de um cara acusado de assédio e que foi, ela própria, vítima do comportamento inadequado dele. Mas comecei a trabalhar numa sequência chamada “E isso é dor”, que é narrada do ponto de vista de várias das vítimas.

Sua obra trabalha muito bem com a ambiguidade. Devemos abrir espaço para ambiguidade em nossas discussões sobre sexualidade e relacionamentos?

Em nossas relações pessoais, com certeza. É importante ter consciência das zonas cinzentas. Mas isso não vale para tribunais que julgam assassinos e estupradores. Essas decisões têm de ser objetivas, por mais que tenhamos certa empatia por alguns criminosos.

Serviço:

"Mau comportamento"

Autora: Mary Gaitskill. Tradução: Bruna Beber. Páginas: 256. Preço: R$ 74,90.

"Isso é prazer + A dificuldade de seguir as regras: date rape , cultura da vítima e responsabilidade individual"

Autora: Mary Gaitskill. Tradutora: Bruna Beber. Páginas: 136. Preço: R$ 49,90