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Mia Couto: 'Vi um Brasil que não parecia ter razão para sambar'

Autor moçambicano lança romance no qual revisita a figura do pai, morto há seis anos, e diz que, politicamente, hoje o país está mais distante da África
O escritor Mia Couto Foto: Mariano Silva/Divulgação
O escritor Mia Couto Foto: Mariano Silva/Divulgação

Quando “O mapeador de ausências”, que acaba de chegar às livrarias, começou a tomar forma, Mia Couto identificou um desejo de voltar à infância. Mais precisamente, à sua Beira natal, no centro de Moçambique. Mais tarde, ao encarar o computador na capital Maputo, criou Diogo, escritor branco que retorna a Beira em 2019, após longo hiato, para receber uma homenagem. Ao mergulhar em memórias familiares, ele compreende a real razão da viagem: redimensionar o papel do pai em sua vida e sua participação na luta de libertação da ex-colônia de Portugal nos anos 1970.

Em um jogo de espelhos, o vencedor do Prêmio Camões também se reencontra no romance indicado para a semifinal do Prêmio Oceanos com o pai, o jornalista e escritor Fernando Couto, que morreu há seis anos e inspira o título do livro. Na conversa com O GLOBO, o escritor e biólogo de 66 anos fala também de sua participação no grupo de cientistas apontado pelo governo moçambicano para definir as estratégias de combate ao coronavírus, e do desejo de retornar a um Brasil pós-pandêmico, menos polarizado politicamente e comprometido com a democracia.

Como surgiu “O mapeador de ausências”?

Desejava voltar à infância e reencontrar a cidade que foi minha. Sentia que Beira não era apenas um lugar, mas eu mesmo. Eu fui aquela cidade. Mas, à medida em que fui revisitando as casas em que vivi, percebi que o que procurava, na verdade, era a figura do meu pai. Era ele quem me oferecia algo como um mapa, traçado em baixorelevo. Ele morreu há seis anos e foi um homem muito delicado, extremamente gentil. Ao escrever, fui percebendo o quanto o conheci através de sua ausência. Ou melhor, descobri que ele tinha uma outra maneira de estar presente. Mais leve.

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Escrever permitiu a você estabelecer um diálogo com este pai que não existia mais?

Sim. Ao ponto em que, em certo momento, olhava para minhas mãos e elas não eram mais minhas. Eram as mãos dele que teclavam no computador. Essa nova presença dele reverberou muito em mim, foi como uma teimosia contra o destino, contra a fatalidade da morte. Meus pais vieram exilados de Portugal. Não conheci meus avós, meus tios. Pai, mãe e irmãos foram meu mundo inteiro por muito tempo. A ansiedade de preservar meu pai está presente no livro.

Capa do livro 'O mapeador de ausências' Foto: Divulgação
Capa do livro 'O mapeador de ausências' Foto: Divulgação

Você escreveu o livro durante a pandemia. Como foi participar diretamente do combate ao vírus que vitimou quase 600 mil brasileiros?

Observo o que se passa no Brasil com tristeza. Houve recusa, teimosia, negação da evidência que veio de cima e foi responsável por uma enorme tragédia. Aqui, a realidade social hegemônica é a de famílias com até 40 pessoas vivendo juntas em casas pequenas, sem saneamento. Não há como falar em isolamento social. O governo seguiu todas as recomendações da comissão científica e antes mesmo do primeiro caso iniciamos o controle nos aeroportos e a campanha de informação nas várias línguas nacionais. (Moçambique registrou 1.825 mortos pelo vírus até ontem).

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Você teve uma conversa com curandeiros interessados em estabelecer um diálogo com o vírus...

Eles perguntaram: “Quando descobrirem que língua o vírus fala nos avise, pois queremos conversar com ele, achamos que ele também está com medo, e por isso se comporta com tanta raiva”. Parece ingênuo, mas é outro modo de se pensar a cura. Entende-se que a doença, física, mental ou espiritual, surge de uma desarmonia. Por isso foi fácil aceitar que o agente causador da pandemia é invisível, que o problema vem do desrespeito aos ecossistemas. Sofremos com o estereótipo do continente atrasado, mas, muito por conta destas sabedorias, aqui não há registro dos antivacina.

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Em 2019, na última vez em que esteve no Brasil, você disse que o país parecia mais distante da África. Este distanciamento aumentou?

Politicamente, é hoje ainda maior. Há um total desinteresse do comando do Brasil em manter as pontes estabelecidas pelas gerações anteriores. E seu país nos faz muita falta. O Brasil faz muita falta. Aprendi sobre mim mesmo ao descobrir “meu lado brasileiro”. Ao mesmo tempo, um dos grandes confortos que tinha ao chegar no Brasil era identificar uma faceta africana do país, o desejo de dar a volta por cima, de sacudir a poeira, de se estar disponível para a alegria. Ingenuamente, pensava que os brasileiros tinham um apetite muito específico pela vida. Que havia algo muito nítido, “os brasileiros”. Em 2019, no entanto, vi um Brasil que não parecia ter razão para sambar.

Como assim?

Descobri que existem outros brasileiros, além daqueles com quem eu convivia. E que eles também fazem parte do que o Brasil é. E que eu havia em certa medida fantasiado, romantizado, o país.

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Sua percepção é anterior à pandemia...

Sim. Era claro para mim que o Brasil continha contradições, desequilíbrios sociais e raciais profundos. Mas mesmo assim me parecia haver um espírito dominante que o impedia de se chegar à realidade com que me deparei. Era como se vocês vivessem um tipo de guerra, ainda que não declarada. Por outro lado, acredito ser possível algo como um reencontro, para além da polarização e do extremismo reinantes. Isso aconteceu em Moçambique, um país profundamente dividido.

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Algo como uma conciliação?

Não tenho qualquer pretensão de julgar ou prever a realidade brasileira a partir da minha em Maputo, mas talvez a busca desta harmonia mais profunda seja uma tradução possível da democracia. Nunca pensei que pudesse sentar na mesma mesa com quem estava do outro lado da luta política, mas hoje o faço. E não sinto que traí a mim mesmo. Foi fundamental olhar o outro nos olhos e humanizá-lo. É tentador pensar que o discurso de ódio vem sempre do oponente, mas muitas vezes não percebemos que esta não é sempre a regra.

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Moçambique enfrenta hoje outra guerra, com o radicalismo islâmico assolando o Norte do país. Como o senhor vê mais esta catástrofe?

É como se voltássemos ao fim do mundo. Esta guerra, que já dura dois anos, é de uma barbárie enorme, protagonizada por grupos que cortam as cabeças das pessoas, esquartejam famílias inteiras na frente dos sobreviventes. É o terror, gerado, também, pela miséria e pelo desespero. É muito doloroso para mim. Trabalhei naquela região como biólogo, fiz amigos que não sei se ainda estão vivos. Há cerca de um milhão de refugiados, ainda são mais esquecidos do que os que cruzam o Mediterrâneo.

Você escreveu sobre o tema?

Sim. Terminei de organizar uma coletânea de contos, que deverá ser lançada no Brasil ano que vem. Meu próximo livro será centrado nas batalhas no Norte do país e no que vivi na pandemia. Acabo, inclusive, de definir o título, que é o de uma das histórias : “O caçador de elefantes invisíveis”.

“O mapeador de ausências"

Autor: Mia Couto. Editora: Companhia das Letras. Páginas: 288. Preço: R$ 54,90.