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'Mito do Brasil brasileiro é opressor', diz Rafael Cardoso, estudioso do modernismo

Em livro lançado na Inglaterra, historiador da arte defende a pluralidade dos modernismos e questiona narrativa forjada em torno da Semana de Arte Moderna de 1922: ‘populações subalternizadas não estavam representadas’
O historiador da arte Rafael Cardoso: "A Semana é parte de um processo que começou na década de 1890 e terminou no Estado Novo" Foto: Patricia Breves / Divulgação
O historiador da arte Rafael Cardoso: "A Semana é parte de um processo que começou na década de 1890 e terminou no Estado Novo" Foto: Patricia Breves / Divulgação

Antes de encerrar a conversa com o GLOBO, o historiador da arte Rafael Cardoso avisa que não quer briga com Mário de Andrade . O aviso tem razão de ser. Em seu novo livro, “Modernity in black and white” (Modernidade em preto e branco), recém-lançado na Inglaterra, Cardoso, que vive em Berlim, apresenta o modernismo como um processo que remonta à última década do século XIX e se completou no Estado Novo (1937-1945). Algo que já estava presente no carnaval, na música, na imprensa e em outras representações da cultura popular anos antes da Semana de Arte Moderna de 1922.

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Um dos capítulos de “Modernity in black and white”, ainda sem previsão de lançamento no Brasil, será publicado na próxima edição da revista “serrote”, do Instituto Moreira Salles (IMS), em julho. Na segunda-feira (26), Cardoso participa do ciclo “1922: modernismos em debate”, promovido pelo IMS, pela Pinacoteca do Estado de São Paulo e pelo Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo (MAC-USP). Nesta entrevista ao GLOBO, ele questiona a atualidade do “Brasil brasileiro” criado pelos modernistas de 22.

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Que mitos modernistas devem ser questionados?

Há uma multiplicidade de modernismos, tanto em termos geográficos como temporais. A visão de que o modernismo representa um período histórico curto ou formas artísticas determinadas está ultrapassada, apesar de ainda ser senso comum no Brasil, onde vigora a ideia de que a Semana de 22 é “o” modernismo. A Semana é parte de um processo que começou na década de 1890 e terminou no Estado Novo. Como historiador, atribuo mais importância ao que chamo de cultura majoritária (imprensa, fotografia, música popular) do que ao modernismo de um pequeno grupo de intelectuais da elite paulista. A modernização do carnaval, nos anos 1910, é muito mais impactante do que o que aconteceu no meio literário na década seguinte.

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Nesses outros modernismos, havia o sentido de ruptura coma tradição que marcou a Semana de 22?

Nas décadas de 1900 e 1910, já havia artistas e críticos se posicionando explicitamente contra o academismo e a favor de uma arte nova, moderna. O Salão Nacional de Belas Artes de 1913, no Rio, ficou conhecido como “Salão dos Novos”. “Baile à fantasia”, de Rodolfo Chamberlain, foi um acontecimento, um marco importante das transformações pictóricas da década. Os críticos disseram que era uma obra arrojada, estilisticamente complexa, que ninguém entendia.

A história dos modernistas descobrindo o Brasil ao incorporarem elementos das culturas afro-brasileiras e indígenas em suas obras também é um mito?

As populações subalternizadas não estavam representadas em 22. Fala-se muito de “O tropical”, de Anita Malfatti, aquele quadro em que uma mulher morena segura uma cesta com frutas. Mas nem dá para saber a etnicidade dela, nem a tela estava na Semana. “A negra”, de Tarsila do Amaral , foi pintada em 1923, em Paris, e só foi exposta no Brasil em 1933. O que teve de representação indígena na Semana eram as telas de Rego Monteiro, que mal ficou sabendo, porque estava em Paris. Quem disse que os modernistas descobriram a cultura negra foi um historiador americano, Robert Smith, nos anos 1940. Oswald de Andrade teria chamado a viagem dos modernistas a Minas em 1924 de “descoberta do Brasil”. Ir de São Paulo a Minas de primeira classe e sendo recebido pelos prefeitos não é descobrir o Brasil. Se você disser no Rio Grande de Sul ou no Pará que os modernistas descobriram o Brasil vai ouvir desaforos.

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A representação das culturas populares pelos modernistas era legítima?

Essa é uma crítica que não me dou ao direito de fazer. Os movimentos negros fazem bem esse discurso. Mas é verdade que muitas daquelas obras não são, de fato, representativas. Emanoel Araújo (diretor do Museu Afro-Brasil) já afirmou que “A negra” é um olhar exotizado de uma mulher branca da elite paulista sobre o corpo de uma mulher genérica: “a” negra. Como assim? Quem é ela? Alguém pintaria um quadro chamado “A branca”?

Os modernistas de 22 são criticados por se apropriarem das culturas populares para resolver o problema da identidade nacional. A identidade criada por eles ainda faz sentido?

Gosto de um texto do Vilém Flusser em que ele diz que toda vez que se resolve um problema cria-se um novo problema. Os modernistas conseguiram criar uma ideia de brasilidade. Mário de Andrade está de parabéns. Só que hoje, a não ser que o Bolsonaro tenha um segundo mandato, o Brasil não corre o risco de se desfazer. A “cultura nacional” segura os pedaços do país. O problema é que ela abafa as diferenças regionais, étnicas e sociais. A “cultura nacional” que resistia à opressão elitista e europeizante se tornou, ela própria, elitista e opressora. Ninguém mais quer ser subjugado por um mito de Brasil forjado em São Paulo. As pessoas não se veem representadas pelo “Brasil brasileiro”. O discurso da brasilidade não é mais libertário, é opressor. Quem é que é a favor do Brasil brasileiro verde-amarelo hoje?

Capa de "Modernity in black and white", livro do historiador da arte Rafael Cardoso, ainda indisponível no Brasil Foto: Reprodução / Divulgação
Capa de "Modernity in black and white", livro do historiador da arte Rafael Cardoso, ainda indisponível no Brasil Foto: Reprodução / Divulgação