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Murakami abre o jogo sobre seu processo criativo em novo livro

Veja o 'mapa da mina' para os conceitos que permeiam a obra do autor
Haruki Murakami, escritor japonês Foto: Divulgação
Haruki Murakami, escritor japonês Foto: Divulgação

RIO - Sempre cotado ao Prêmio Nobel de Literatura, Haruki Murakami abre o jogo sobre seu processo criativo. No livro “Romancista como vocação” (Alfaguara), recém-lançado no Brasil, o escritor japonês analisa sua própria trajetória: da juventude de estudos medíocres à celebridade literária, passando pelo período em que se desdobrava entre a preparação de seu primeiro livro e a administração de um café, a obra faz um raio-x, em 11 capítulos, das ideias de Murakami sobre o ofício.

Veja um mapa da mina para os conceitos que permeiam a obra do autor de “Norwegian wood” e “Dance dance dance”. Convicções éticas e estéticas sobre escrita se ligam a temas como esportes, música, linguagem e originalidade. ( E leia a crítica do livro )

Um mapa para Murakami

Ao sair da faculdade, em 1974, Murakami abriu um café, só para poder trabalhar ouvindo jazz o dia inteiro. Ele e a esposa viviam com pouco dinheiro — não tinham rádio nem TV, e mal conseguiam pagar a calefação. Para se esquentar nas noites frias, dormiam abraçados no gato do casal.

Muita gente se pergunta por que Murakami não escreve sobre personagens de sua faixa etária (ele tem 65 anos). O autor argumenta: estava na casa dos 50 quando escreveu “Kafka à beira-mar”, mas se sentiu, durante o processo, com os mesmos

15 anos do personagem. Ele buscou em suas memórias a matéria-prima para compor o personagem, extraindo com a força da escrita o que estava há tempos escondido em seu íntimo.

Antes de começar um romance, o escritor sempre cultiva um “período de silêncio” dentro dele. O embrião da obra fica um tempo em banho-maria, num lugar “frio e escuro”, antes de ser exposto à luz. A concepção ganha forma aos poucos, como a sensação do corpo esquentando gradativamente ao entrar em águas termais.

Murakami conta que tomou coragem para escrever em 1978, enquanto assistia a um jogo de baseball no estádio. É uma sensação que até hoje não sabe explicar. Quando um jogador americano desconhecido rebateu uma bola difícil, ele ouviu o som agradável do taco, os aplausos, e pensou: “talvez eu também possa escrever um romance”. Ao sair do jogo, comprou caderno e caneta e começou a escrever após o trabalho no bar.

Murakami chama seus dois primeiros livros de “romances de mesa de cozinha”, pois os escreveu de madrugada na mesa da cozinha do seu pequeno apartamento (ele não tinha escritório). O romance seguinte (“Norwegian wood”) foi escrito em vários lugares e países, mas sempre improvisando uma espécie de escritório portátil: mesa de um ferry boat, sala de espera de aeroporto ou algum lugar de apoio num hotel barato.

Ter um estilo único é uma das exigências para ser um artista original, diz Murakami. É preciso construir uma habilidade própria para isso — mas, uma vez definido, esse estilo se tornará uma espécie de padrão no imaginário das pessoas, como foi com Picasso, Van Gogh e Hemingway. Um autor só será original se encontrar também uma alegria e espontaneidade próprias na escrita.

Quando terminou seu primeiro romance, “Ouça a canção do vento”, de 1978 (por aqui, publicado apenas no ano passado), Murakami não gostou muito do resultado (conseguiu expressar apenas 20% do que pretendia), mas ficou feliz por preencher um vazio que, aos 30 anos, ainda tinha no coração. Também percebeu sua relação com a escrita. Era como tocar um instrumento: "garantir o ritmo, encontrar um belo acorde e acreditar no poder da improvisação”.

Certa vez, o escritor perdeu o arquivo com um capítulo inteiro de um romance. Escreveu tudo de novo, perguntando-se se a segunda versão estaria tão boa quanto a primeira. Muito mais tarde, quando a reescrita já estava pronta, o original reapareceu, e Murakami percebeu que a nova tentativa estava até melhor. Conclusão: em literatura, não há bom trabalho que não possa ser melhorado.

Para aguentar o longo e solitário trabalho sem perder a concentração, é preciso bom preparo físico, defende o escritor. Uma determinação que só é adquirida se ele viver de forma completa e fortalecer seu corpo (a “armadura da alma”). Nesse sentido, o ato de correr tem um grande significado para Murakami. É “aquilo que eu tenho que fazer neste mundo”, diz.

No início, muitas ideias se misturavam na cabeça do autor, e ele não conseguia transformá-las nas frases simples que queria. Começou então a escrever em inglês. Como dominava mal a língua estrangeira, a prosa passou a fluir de forma mais natural e direta, sem necessidade de recorrer a palavras difíceis. Depois, Murakami traduziu o texto do inglês para o japonês e descobriu um novo estilo de escrever em sua própria língua.

Um mapa para Murakami