Exclusivo para Assinantes
Cultura Livros

Mussa compila mitos em sua volta à não ficção

“A origem da espécie” busca reconstruir história que seria a origem comum de todas as outras - e revela suas fontes detalhadamente

"A origem da espécie"

Autor: Alberto Mussa.

Editora: Record.

Páginas: 352.

Preço: R$ 54,90.

Cotação: Ótimo.

Depois de escrever romances policiais sobre a história do Rio de Janeiro, o escritor carioca Alberto Mussa queria renovar seu repertório. Voltou a um tema que o fascinava: os mitos sobre o roubo do fogo. O resultado é “A origem da espécie” (Record), metade ensaio interpretativo, metade compilação de mitos.

'Correntes': Liivro que projetou a nobel Olga Tokarczuk, desafia os limites da linguagem

Na primeira parte, mais analítica, o autor busca reconstruir um “protomito”, a história que seria a origem comum de todas as outras histórias sobre como a humanidade obteve o domínio do fogo. Combinando genética e arqueologia, estudos literários e antropológicos, o autor chega a alguns elementos dessa narrativa arcaica: o fogo era de um dono demiurgo e celeste, que se recusava a compartilhá-lo; então um ser alado o rouba e o distribui à humanidade.

Na segunda parte do livro, apresentando o levantamento que lhe serviu de base, Mussa nos oferece uma compilação de histórias de povos do mundo inteiro. No sentido mais amplo da palavra “mundo”: mitos das Américas, de vários povos africanos, da Oceania, das estepes asiáticas, de tribos no Oriente Médio, do subcontinente indiano, do Extremo Oriente, de ilhas e montanhas as mais inacessíveis. Aparecem até histórias gregas e bíblicas.

Mia Couto: 'Vi um Brasil que não parecia ter razão para sambar'

Subtexto político

O movimento de releitura e reescrita de mitos não é novo na obra do escritor. Tampouco é nova a sua renovação de repertório em fontes arcaicas e pouco badaladas no meio literário. Um exemplo de ambos os recursos está em “O enigma de Qaf” (Record, 2004), romance de estrutura intrincada, na qual contos que reinventam narrativas da cultura árabe (Xerazade e Sinbad, por exemplo) se concatenam a um mergulho ficcional nas tribos beduínas pré-islâmicas.

“A origem da espécie” também não é o primeiro trabalho de não ficção do autor. Se não se contar o inclassificável “Meu destino é ser onça” (Record, 2009), reconstituição livre de uma possível saga mitológica dos tupinambás, há também “Samba de enredo: história e arte” (Civilização Brasileira, 2010), coescrito com Luiz Antonio Simas.

Bukowski na fogueira: entenda por que feministas não suportam mais culto em torno do auto r

No geral, portanto, “A origem da espécie” demonstra uma continuidade na obra de Mussa, um autor fiel a suas obsessões (adultério, mitos, jogos de erudição, questões linguísticas e antropológicas). Se há uma diferença marcante em relação aos outros livros, talvez seja o subtexto político — o menos oculto que Mussa já escreveu.

Aqui é preciso um esclarecimento. Se a história original do roubo do fogo foi contada há cerca de 150 mil anos, numa sociedade radicalmente distinta da nossa (para dizer o mínimo), como é possível que haja um subtexto político para os dias de hoje?

O próprio livro sugere uma resposta. Lê-se na página 154: “importante, fundamental para o pensamento mítico da época (...) era a transmissão de uma determinada ideologia”, escreve Mussa. “Porque o mito do roubo do fogo, além de tantas outras coisas, é o texto de um poderoso programa ideológico, que põe o ladrão generoso no papel de herói, e o dono, demiurgo egoísta, no de vilão.”

Ana Martins Marques: 'O poema ensina a não esperar explicações'

Numa das passagens mais interessantes do livro, quando o ficcionista retoma por um instante o controle da voz autoral, imagina-se a surpresa de um grupo humano arcaico, ao compartilhar o fogo pela primeira vez com outro grupo, antes inimigo potencial. Ao contrário de outros bens coletados, que diminuíam quando divididos, o fogo se multiplica. Há o suficiente para ambos, se souberem como reparti-lo. Não é preciso um vasto repertório transdisciplinar para compreender a sugestão.

Se a metade ensaística reserva insights dos mais fascinantes (alguns de arrepiar os antropólogos mais ortodoxos), a metade compilatória se mostra mais desigual. A bateria de mitos pode ser uma leitura árida, em parte pela descontextualização, em parte pela quantidade vertiginosa.

'Torpedo 1936': Clássico espanhol dos quadrinhos é retrato de um cafajeste sem redenção

Pode ser melhor fruída durante semanas ou meses, indo e vindo entre povos e mitos, assim como, segundo o tradutor Giorgio Sinedino, se leem os clássicos chineses.

Também são áridas as tabelas ao final do livro. É louvável a intenção de disponibilizar ao público os dados que fundamentaram a interpretação, permitindo checagens e até contestações. Mas, num ensaio que reivindica um espírito livre e um leitor não especialista, talvez houvesse soluções menos pesadas, mais amigáveis. E mais modernas — por que não pensá-las num formato digital? Uma versão on-line dos dados não só permitiria a completude, como também facilitaria o compartilhamento e a colaboração do público. Seria uma forma contemporânea de manter aceso o legado — talvez mais urgente do que nunca — do roubo primordial.

Henrique Balbi é escritor e professor de literatura, mestre em Estudos Brasileiros e doutorando em Literatura Brasileira (USP)