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Na autoficção 'Trânsito', de Rachel Cusk, quem brilha são os coadjuvantes

No segundo volume da trilogia iniciada com ‘Esboço’, escritora anglo-canadense
A escritora Rachel Cusk Foto: Divulgação
A escritora Rachel Cusk Foto: Divulgação

“Trânsito” Autora: Rachel Cusk. Editora: Todavia. Tradução: Fernanda Abreu. Páginas: 200. Preço: R$ 59,90. Cotação: Ótimo.

Capa de "Trânsito", de Rachel Cusk Foto: Divulgação
Capa de "Trânsito", de Rachel Cusk Foto: Divulgação

Quem gosta de literatura deve conhecer uma curiosa sacada do mestre argentino Julio Cortázar (1914-1984). Fã de boxe, ele dizia que os bons contistas ganham o leitor no nocaute, enquanto os romancistas decidem a luta por pontos, round a round. Essa analogia cabe muito bem à obra da anglo-canadense Rachel Cusk, que agora chega por aqui com “Trânsito”. Seus romances sempre começam sem grandes pretensões, assim meio devagar, mas, quando o leitor percebe, foi nocauteado — só para contrariar Cortázar.

Primeira parte: No romance ‘Esboço’, Rachel Cusk expõe com habilidade hipocrisia cotidiana

Segundo volume da trilogia iniciada por “Esboço” (Todavia, 2019), “Trânsito” mantém o olhar de Rachel sobre família, relacionamentos, dores e outras inevitabilidades da existência. De alguma maneira, a escritora segue — ou atualiza — temas já comentados em outros livros seus, como “Arlington Park” (Companhia das Letras, 2007).

A protagonista de “Trânsito” é a mesma do “Esboço”: Faye, bem-sucedida escritora que está voltando a viver em Londres, depois de anos mui confortavelmente instalada no interior do país. Divorciou-se, deixou o marido para trás e neste momento cuida dos preparativos da casa onde vai morar com os seus dois filhos.

A nova situação de Faye abre espaço a questionamentos, reflexões e projetos, que a narradora gosta de burilar entre uma e outra questão prática a ser contornada. O clima de perdas, involuntárias ou não, é frequente na narrativa. Faye não parece muito feliz com suas decisões e, sobretudo, com suas indecisões.

Não por acaso, ela abre sua narrativa comentando sobre um e-mail assinado por uma astróloga que promete mudar sua vida. Trata-se de enganação mais do que óbvia, mas a mensagem picareta parece mesmo adivinhar o momento astral da narradora. Tanto que até desce da sua “razão pragmática” e paga pelo serviço da astróloga, a ver se poderá contar com boas mudanças no seu caminho, e de vez em quando se refere a ela.

Por aí já se percebe que o que está precisando mesmo de reformas, ainda mais radicais do que a casa recém-comprada, é a própria Faye. Ela sabe disso, só que recauchutar a própria cabeça dá muito trabalho, principalmente quando a sensibilidade está à flor da pele, e tudo se torna um gatilho pronto para revolver a memória e os sentimentos esquecidos.

Deuses e demônios

E ainda tem outro detalhe interessante: Faye costuma se lembrar mais de seus erros do que dos acertos, coisa que não costuma ajudar muito as pessoas intranquilas em momentos decisivos, como o da narradora.

Essa característica tão comum entre nós aparece, por exemplo, quando Faye se depara com Gerard, o antigo namorado. No encontro, ao acaso, é como se o tempo não tivesse passado para ele. Agora casado, pai de uma menininha, continua igual, mora na mesma casa de sempre, e até mesmo sua camisa talvez seja a mesma de 15 anos antes, quando Faye o trocou por outro homem sem dar maior satisfação. Encontros casuais podem ressuscitar deuses e demônios adormecidos, como sabemos.

Tudo bem que Faye não seja a mulher mais bem-humorada do mundo, mas ao menos tem a sorte de encontrar interlocutores mais descontraídos, que temperam com sua leveza o tom um tanto sisudo-reflexivo da narrativa:

“Quando falei para minha mãe que tinha escrito um livro, a primeira coisa que ela disse foi: ‘Você sempre foi uma criança difícil’”, diz um colega escritor. Boazinha.

“Trânsito” segue seu rumo com Faye tropeçando em velhas amizades e pequenas surpresas, e todos que estão por perto parecem ter um recado a dar, ainda que perdido na pressa do cotidiano.

Pensar assim facilita muito a tarefa da escritora, que tem prazer especial em ouvir histórias alheias. Ora é o cabeleireiro, ora é o mestre de obras, ora é um colega num debate literário... Tudo rende (ou pode render) boa prosa e literatura, e é disso que estamos precisando.

Como contar histórias

Certo é que é impossível não ver Rachel Cusk na sua protagonista-narradora, e o bom é que o leitor não corre o risco de ficar saturado da sua presença.

Rachel não faz o tipo de escritora que AMA ditar regras sobre o mundo, pecado insuportável cada vez mais frequente. Não detém o monopólio da fala. Observadora gentil, trata de dar voz também aos seus coadjuvantes, em vez de usá-los para a apologia do próprio umbigo. Na literatura da anglo-canadense, todos têm direito a 15 minutos de fama.

No fim, Rachel sai ganhando. Mostrar os outros, do seu jeito, é maneira delicada e corajosa de mostrar a si mesmo. “A realidade pode substituir a fantasia como um modo de distrair as pessoas dos fatos de sua vida”, escreve ela, na voz da personagem.

A manha no trato com a autoficção — um recurso tão em voga e que já está cansando — tem tornado a escritora cada vez mais respeitada mundo afora.

Essa aposta peculiar na autoficção dá o tom de toda a obra de Rachel Cusk, de 53 anos, que começou a ganhar destaque justamente quando expôs com clareza, em “A life’s work: On becoming a mother” (2001), como a maternidade está longe de ser o mar de rosas tão cantado em verso e prosa. Ou seja: falou algo que todo mundo sabe, nem todos admitem e poucos sabem expressar tão bem.

No fim das contas, Rachel Cusk deixa em “Trânsito” o terreno aberto para a continuação da trilogia, “Kudos”, que será publicada aqui em 2021. E deixa claro, uma vez mais, que já não interessa muito o que estamos contando , até porque tudo já foi contado. O que vale consideração é saber como estamos contando uma história, por mais banal que seja. E falar de si é uma banalidade que só dá certo quando o escriba tem talento. É o caso.

Nelson Vasconcelos é jornalista

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