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Por Fabiane Secches — Rio de Janeiro


A escritora Clara Drummond — Foto: Austėja Ščiavinskaitė_TR
A escritora Clara Drummond — Foto: Austėja Ščiavinskaitė_TR

Em 2006, num debate em que o cineasta Walter Salles, um dos herdeiros da família Moreira Salles, analisava o filme “São Paulo, S/A” (1965), de Luiz Sérgio Person, alguém fez o seguinte comentário: “É sempre a classe média. Estranho que nossos diretores não toquem na burguesia ou nos banqueiros, nos grandes grupos econômicos”. Salles não se esquivou em responder: “Vindo dessa classe social, eu te digo porque é tão difícil tratar dela no cinema: a alta burguesia brasileira é muito caricata” e completou: “Talvez só um Buñuel”.

Já a literatura brasileira contemporânea vem fazendo suas tentativas, como nos romances “A tirania do amor”, de Cristovão Tezza (Todavia, 2018), “As sobras de ontem”, de Marcelo Vicintin (Companhia das Letras, 2020), “Mundos de uma noite só”, de Renata Belmonte (Faria e Silva, 2020), entre outros. Agora chega o ótimo “Os coadjuvantes” (Companhia das Letras, 2022), de Clara Drummond, para engrossar a lista.

Esse é o terceiro livro da autora, que já circundava o tema de algum modo nas suas obras anteriores, mas também é o seu romance mais político e o mais bem resolvido. Em texto para a orelha do romance, Marcelo Pen, professor de literatura da Universidade de São Paulo, ampara a obra de Drummond numa “tradição que flagra tintas satíricas, entre o riso e a crueldade, o esboroamento de certa classe proprietária brasileira”, na qual inclui Machado de Assis, Zulmira Ribeiro Tavares e Chico Buarque.

O termo “alta burguesia” traz consigo uma questão, principalmente quando abarca famílias que acumulam dinheiro há gerações, mais identificadas com um modelo aristocrático do que burguês, atreladas a signos próprios, como a ligação entre a vida social e religiosa, e eurocêntricos — como acontece na minissérie “Inventando Anna” (Netflix, 2022), em que uma suposta herdeira alemã encanta e engana pessoas endinheiradas de Nova York, deslumbradas com sua alegada origem.

Para uma crítica aguda e bem humorada da aristocracia, sugiro a leitura de “Emma” (1815), romance de Jane Austen, em que a protagonista, herdeira de uma família inglesa tradicional, tem dificuldade de conviver com um casal de comerciantes que enriqueceu subitamente, sem o acúmulo social e cultural de sua classe. F. Scott Fitzgerald também fez isso muito bem em sua obra, com destaque para “O grande Gatsby” (1925).

Vivian, a narradora e protagonista de “Os coadjuvantes”, é filha de uma família carioca abastada, embora não se considere rica de verdade — num mundo de bilionários, toda riqueza é relativa —, e nos é apresentada pela autora de forma ainda mais antipática do que a Emma de Austen.

Narradora sincera desperta empatia

A personagem é afetada e imatura, mas também tão franca sobre seus privilégios, alienações, fragilidades e observações críticas e autocríticas que há nela quase uma espécie de pureza. Todo mundo quer pensar em si mesmo como uma boa pessoa, mas Vivian não parece empenhada nessa construção de narrativa, nem sequer acredita em redenção.

Ela sente tudo e nada ao mesmo tempo e, embora diga que sua culpa é tão maleável que pode transformá-la num texto sobre empatia, nas contradições do seu discurso, podemos perceber que não é tão simples assim.

A personagem vai vivendo e sobrevivendo como sabe, enquanto compartilha conosco a sua jornada, que se concentra sobretudo no seu mundo interno (memórias do passado que a assombram), que ajudam a humanizá-la. Ao longo do romance, quem diria, pode despertar não apenas certa simpatia, como também, em alguns momentos, até mesmo compaixão. O que ela provavelmente detestaria.

Parte disso, é verdade, se deve ao uso do humor ácido, que torna o livro genuinamente engraçado, mesmo nas passagens mais desoladoras, e por isso é tão sedutor. Diz-se que se algo nos faz rir, perdoamos tudo — o que pode ser um caminho muito perigoso.

O livro 'Os coadjuvantes', de Clara Drummond, da Companhia das Letras — Foto: Divulgação
O livro 'Os coadjuvantes', de Clara Drummond, da Companhia das Letras — Foto: Divulgação

O melhor do livro acontece quando Drummond se concentra nas relações familiares de Vivian, em especial na dinâmica com a mãe. A autora consegue retratá-las com uma ambivalência quase caricatural, mas também verossímil, de forma muito espirituosa. E nunca simplifica nem o enredo, nem a forma em favor da piada. Tudo se desenvolve num texto seguro, consistente, sem tropeços.

O romance fala ainda de machismo, racismo, gentrificação, desigualdade social e diversas formas de violência sem recorrer a lugares comuns, com a riqueza que só a literatura, e a arte de forma geral, é capaz de alcançar. O mundo das artes, aliás, é um dos focos principais do livro e Drummond, que frequenta e conhece com propriedade esse universo, traz uma mistura própria de referências bem trabalhadas.

Vivian descreve a diferença entre os códigos sociais da geração de seus pais e de uma nova geração de herdeiros: parte continua em busca de reproduzir o modelo antigo, parte quer desconstruí-lo, talvez por uma razão mais estética do que ética. É nesse ínterim que acaba havendo espaço para que a protagonista conheça uma ambulante que vende cerveja perto de seu apartamento em Botafogo (presente dos pais) e estabeleça uma relação mínima com ela.

Esse encontro e seus desdobramentos não produzem transformações edificantes, mas têm mais impacto na protagonista do que ela gostaria de admitir. “Os coadjuvantes” é um livro que pode fomentar debates importantes, mas, além disso, digo com a alegria de quem gosta de ler, é boa literatura, com uma voz autoral e corajosa, com um frescor raro de encontrar.

“Os coadjuvantes”.
Autora: Clara Drummond. Editora: Companhia das Letras. Páginas: 112. Preço: R$ 54,90. Cotação: Ótimo.

Fabiane Secches é psicanalista e crítica literária, doutoranda em Teoria Literária e Literatura Comparada na USP

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