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Por Ruan de Sousa Gabriel


A escritora americana Saidiya Hartman cujo lado pop fez com que que aparecesse em clipe de Jay-Z Divulgação — Foto:
A escritora americana Saidiya Hartman cujo lado pop fez com que que aparecesse em clipe de Jay-Z Divulgação — Foto:

A americana Saidiya Hartman não é uma acadêmica convencional. Professora da Universidade de Columbia, ela, que se dedica a pensar a “sobrevida da escravidão” e diz enfrentar “o poder e a autoridade dos arquivos”, inspira poetas e artistas plásticos com sua prosa sedutora, que pretende recusar a frieza da escrita acadêmica. Também apareceu no clipe de “4:44”, de Jay-Z. Recém-lançado pela Fósforo, o livro “Vidas rebeldes, belos experimentos” resume seu projeto intelectual: “borrar as linhas entre a História e a imaginação”. Com base em arquivos de reformatórios, transcrições de julgamentos, relatórios de assistentes sociais, registros de cobradores de aluguel e fotografias, ela reconstitui a vida de mulheres jovens nos guetos negros de Nova York e da Filadélfia, entre 1890 e 1935. Segundo a autora, que as chama de “pensadoras radicais” e “modernistas sexuais”, elas recusaram a existência subalternizada a que estavam destinadas ao perseguir o próprio prazer e experimentar o amor livre, as relações homossexuais e a maternidade solo.

A obra de Saidiya Hartman vem chamando atenção no Brasil. No ano passado, a Fósforo editou “O fim da supremacia branca” e a Bazar do Tempo publicou “Perder a mãe”, investigação original sobre consequências do comércio de pessoas escravizadas. O ensaio “A trama para acabar com ela” foi incluído na última edição da revista Serrote. No ano que vem, a Crocodilo promete lançar “Cenas de sujeição”. Em entrevista ao GLOBO, Hartman disse que a atitude das personagens de “Vidas rebeldes” ecoa nos protestos recentes contra o racismo e a violência policial.

Por que chamar as protagonistas do livro de “pensadoras radicais”, um título em geral atribuído a nomes como Karl Marx ou Angela Davis?

Me interesso pelo que Foucault chamou de “saberes subjugados” e pela política que não se organiza ao redor de líderes carismáticos. Quero pensar o radicalismo negro a partir do chão de fábrica, pois muitas vezes as massas promovem mudanças radicais que só depois são teorizadas por intelectuais.

Como integrar os “saberes subjugados” ao cânone?

Diversificar o cânone é importante, mas meu horizonte político vai além disso. Por não estarem familiarizadas com a ideologia dominante, as mulheres sobre as quais escrevi puderam ir além do que sonhavam os líderes progressistas e reformadores sociais de sua época. Com frequência, há uma distância imensa entre o que os intelectuais imaginam como possível e o que os oprimidos desejam. Devemos reconhecer os saberes subjugados de mulheres não brancas por sua força socialmente disruptiva, e não apenas incluí-los em uma hierarquia intelectual mais representativa.

Você chama suas protagonistas de “modernistas sexuais”. No entanto, a sexualidade negra foi historicamente explorada e até tratada como ameaça.

O confinamento da sexualidade feminina ao casamento e à produção de herdeiros é tão importante para o capitalismo quando a privatização da terra. Feministas como Silvia Federici já disseram isso. No livro, não quis sublinhar o papel mulheres negras como agentes da liberação sexual, mas pensar os arranjos íntimos fora do casamento heterossexual numa época que os líderes negros ainda promoviam uma política da respeitabilidade em resposta à fetichização da sexualidade negra. Esse discurso, no entanto, reafirmava os papéis de gênero. As práticas sexuais daquelas jovens, assim como a rejeição de trabalhar como empregadas domésticas, indicavam recusa da servidão.

A revolução protagonizada por essas jovens está viva ainda hoje? Onde?

Veja os milhões de pessoas que, em 2020, protestaram contra o racismo e a violência policial. O desencanto com o capitalismo é gritante. A quantidade de riqueza que os bilionários acumularam na pandemia é assombrosa. Achille Mbembe (filósofo camaronês) fala em “negrificação do mundo”. Antes, a vida dos negros era mercadoria. Agora, a vida de todos é. A ascensão da extrema direita tem levado movimentos progressistas a pensar novas maneiras de existir socialmente. Se não fizermos algo, assistiremos ao fim da existência humana no planeta. Os bilionários talvez escapem daqui, mas nós, os 99%, precisamos pensar em como sobreviver.

Foto de mulher afro-americana não identificada incluída no livro "Vidas rebeldes, belos experimentos", de Saidiya Hartman Divulgação — Foto:
Foto de mulher afro-americana não identificada incluída no livro "Vidas rebeldes, belos experimentos", de Saidiya Hartman Divulgação — Foto:

Os arquivos tratam suas protagonistas como problemas, maus exemplos, mas você as descreve positivamente e enfatiza a luta delas pela liberdade. Por que confrontar os arquivos?

Para verificar que novas afirmações podemos tirar deles. Li vários relatórios de reformatórios, que deveriam ser imparciais, baseados em boatos e fofoca de vizinho. As declarações das “transgressoras sexuais” seguiam um roteiro: dizem-se tristes por ter agido contra sua própria moral e expressavam o desejo de se casar e trabalhar como empregada doméstica. Outras diziam coisas como “foi errado, mas era o que eu queria fazer”. Na época, as leis que regulavam o comportamento sexual de menores de idade só puniam as meninas. Confrontando os arquivos, podemos ver as múltiplas formas de violência usadas para conter as classes trabalhadoras, negros e imigrantes.

Você também é citada como uma influência de poetas e artistas e já apareceu num clipe de Jay-Z. Como vê a apropriação do seu trabalho além da academia?

Muita coisa em “Vidas rebeldes” nasceu de diálogos com artistas. Em “Cenas de sujeição”, trabalhei junto com dois artistas. Cameron Rowland fez uma série de mapas conceituais que são uma espécie de guia para o livro. Estou sempre pensando em como minhas ideias podem viajar e se transformar em práticas.

Você disse que quer “borrar as linhas entre História e imaginação”. Não teme que uma escrita tão livre prejudique a recepção do seu trabalho na academia?

Não escrevo para os meus pares e sempre suponho que meus livros serão mal recebidos (risos). Como mulher negra, estou na base da hierarquia intelectual. Já tive vários colegas que não me levavam a sério por nunca terem trabalhado com alguém como eu. Mas eu me levei a sério. E isso foi suficiente. Tenho uma responsabilidade para com a longa tradição de pensadores raciais negros que vieram antes de mim.

O que é a “sobrevida da escravidão”?

A escravidão estruturou o mundo moderno, dos nossos valores à nossa linguagem. A Abolição não alterou essas estruturas. Nos EUA, a polícia como a conhecemos hoje nasceu para lidar com a população negra recém-liberta. A escravidão não é uma estrutura jurídica já superada, mas é como uma lógica que ainda determina o valor da vida negra, violência econômica e acumulação de capital.

Capa do livro "Vidas rebeldes, belos experimentos", de Saidiya Hartman, publicado pela Fósforo Divulgação — Foto:
Capa do livro "Vidas rebeldes, belos experimentos", de Saidiya Hartman, publicado pela Fósforo Divulgação — Foto:

Serviço:

“Vidas rebeldes, belos experimentos”

Autora: Saidiya Hartman. Tradução: Floresta. Páginas: 432. Preço: R$ 89,90.

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