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Por Ruan de Sousa Gabriel — São Paulo


Andrea Abreu, espalhola autora do livro "Pança de Burro" (Companhia das Letras) — Foto: Alex de la Torre / Divulgação
Andrea Abreu, espalhola autora do livro "Pança de Burro" (Companhia das Letras) — Foto: Alex de la Torre / Divulgação

À primeira vista, o romance “Pança de burro”, da espanhola Andrea Abreu, lembra a celebrada tetralogia de Elena Ferrante. As protagonistas — uma narradora sem nome e Isora — se parecem com Lenu e Lila, as amigas geniais que crescem num bairro operário na Nápoles do pós-guerra. Alguns temas se repetem, como a amizade obsessiva e a oposição entre o dialeto dos pobres e a língua oficial. A narradora é uma Lenu que não gosta de ler e idolatra Isora, sua amiga “tão atrevidinha”, “tão sem medo”, como Lila. “Eu adorava a capacidade da Isora para dizer não às pessoas. Ela não tinha medo de que deixassem de gostar dela”, diz.

O cenário, porém, é Tenerife, nas Ilhas Canárias (arquipélago espanhol próximo à costa marroquina), e lembra mais o Rio de Janeiro do que Nápoles: um lugar cheio de morros nos quais vivem os que trabalham para os ricos e os turistas que podem aproveitar a praia e o sol. E Abreu não é reclusa como Ferrante. Nem pretende continuar a história de suas meninas em outros livros, mas seguirá “explorando o universo do bairro”.

— Não sinto tanta influência de Ferrante, mas sei que ela está presente no livro. Me afetou muito ver a relação de idolatria que a protagonista da tetralogia tem com a melhor amiga. Nisso, nossas meninas são se parecem. De resto, não há muito o que comparar. Ela é Ferrante, sabe? — diz Abreu por e-mail ao GLOBO.

Nascida em 1995, na cidade de suas protagonistas, Abreu se tornou uma celebridade literária na Espanha após a publicação de “Pança de burro”, em 2020. O romance já vendeu mais de 70 mil exemplares por lá, foi comprado por editoras de 21 países e vai virar filme. “Pança de burro” de passa em 2005, quando as personagens têm 10 anos de idade. A narradora mora no alto de um morro, em uma casa que é ampliada a cada geração para abrigar mais parentes: pais, filhos, avó, tio. Órfã de mãe e sem notícias do pai, Isora vive com uma tia e a avó, dona de uma venda, que a oprime com dietas malucas.

Nas férias de verão, as duas tentam escapar para a praia, passeiam pela vizinhança e, inspiradas nas novelas, encenam brincadeiras sexuais com seus kens e barbies. Às vezes, a narradora ajuda a mãe a limpar as casas de veraneios dos turistas. Ela “gostava e não gostava” dessas casas. “Gostava porque eram bonitas mas não gostava porque entre elas e eu havia como que uma parede enorme de plástico transparente de cozinha, plástico-filme, que não me deixava participar das melhores coisas das casas de veraneio”, diz.

Filha de um operário e de uma faxineira, Abreu também percebia “um muro transparente” a separar a sua Tenerife da dos turistas. Jornalista de formação, antes de publicar “Pança de burro” ela trabalhava em uma loja de roupas e sua renda nunca tinha superado mil euros mensais (atual salário mínimo espanhol). Abreu descreve “Pança de burro” como “exercício de autoaceitação” e “tomada de consciência de classe”.

— Minha perspectiva nunca foi a dos que vêm às Canárias em busca de sol e praia, mas a daqueles que destroem as costas e as mãos para servir aos turistas. Não estamos acostumados a ler sobre esses personagens — explica. — Nas Canárias, somos preparados desde a escola para servir aos estrangeiros. Crescemos pensando em como tornar tudo turístico, porque não conhecemos outra maneira de sobreviver. Depois, entendemos que o turismo é uma atividade extrativista que enriquece a poucos (em sua maioria, estrangeiros).

Abreu impressionou a crítica literária da “Península” (como os habitantes do arquipélago chamam a Espanha continental) ao contaminar o idioma tão ciosamente defendido pela Real Academia Espanhola com os dialetos canários. A prosa de “Pança de burro” é cheia de repetições, diminutivos, oralidade, a linguagem das salas de bate-papo dos anos 2000 e palavras tipicamente canárias, como “guagua” (ônibus”) e “fisquito” (traduzido como “tiquinho”). Abreu defende o uso do dialeto como um “posicionamento político” e conta que alguns “peninsulares” já se atreveram a lhe dizer que, nas Ilhas Canárias, ninguém fala como em “Pança de burro”.

— Escrever em canário, ou nesse simulacro de canário que eu desenvolvi, é uma maneira de responder à nossa dependência cultural e criar discursos que não esperam pela autorização da Península e de suas instituições linguísticas. Não há coisa mais rica do que uma conversa em uma “guagua” — diz. — Muita gente na Península gostou do romance, que segue vendendo bem. Mas algumas pessoas disseram coisas horríveis sobre os personagens e sobre mim. Acho que é natural, porque muitas delas não conhecem a identidade canária para além do turismo.

Leitores com frequência perguntam a Abreu se ela já teve uma amiga como Isora. Ela responde que sim, já teve várias, “do contrário, não teria sido capaz de escrever este livro”. O romance também retrata o despertar da sexualidade das duas meninas. A narradora repara que Isora já tem pelos nas virilhas e sonha com o dia em que também poderá se depilar. “Isora e eu fazíamos muitas coisas nessa região do corpo, dos pés até a barriga. Sobretudo na região da perereca”, diz ela. Abreu explica que quis escrever sobre uma amizade que se confundia com “o desejo, a inveja, o nojo, a raiva, o ciúme” e, portanto, não podia deixar a sexualidade de fora.

— Quis narrar os afetos selvagens das meninas pré-adolescentes e isso incluía o jogo sexual — afirma. — Não sei se as minhas meninas estão apaixonadas ou não, mas elas se desejam. Geralmente, não se dá às meninas o direito ao desejo. E eu queria que elas tivessem esse direito.

O título “Pança de burro” se refere às nuvens espessas que costumam baixar sobre o norte das Ilhas Canárias e que, para Abreu, “são como uma tristeza pesada sobre o cangote”.

— É esse fenômeno meteorológico que permite a vida e o verde das matas da região em que eu cresci, mas, ainda assim, me entristece.

Efeito Ferrante

Parte do sucesso de "Pança de Burro", queira ou não a jovem autora, se deve em parte ao chamado “efeito Elena Ferrante”. Fenômeno editorial, a autora misteriosa vendeu 13 milhões de cópias no mundo todo, teve sua obra transformada em série e filme e gerou uma ânsia do mercado editorial e dos próprios leitores por alguém que ocupe o lugar da italiana na mesa de cabeceira. Criar uma narrativa memorialista que se desenvolva longe das grandes metrópoles tendo como protagonistas mulheres comuns (e ao mesmo tempo, especiais) já faz soar alertas de “nova Ferrante”.

O sul da Itália se tornou um filão à parte, explorado por autoras como Rosa Ventrella. Formada em História, a italiana também escreve sobre a condição das mulheres — tema no qual, aliás, é especialista. Publicado em 17 países e com os direitos para o cinema já adquiridos, o seu “História de uma família decente” a incluiu na “linha de sucessão” de Ferrante. Em vez de Nápoles, o livro se passa 200 km ao leste, em Bari, onde acompanhamos a difícil vida de uma jovem em uma paisagem muito parecida.

“No passado fomos mais relutantes em escrever sobre certos tópicos, temendo que eles pudessem ser rotulados como ‘coisas de mulher’. Mas isso está mudando”, disse ao New York Times a escritora romana Veronica Raimo, autora do romance “Miden”, romance que fala sobre casamento, gravidez e agressão sexual. Sucesso nos EUA, ainda não foi traduzida no Brasil.

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Outro que costuma ser associado com Ferrante é Paolo Cognetti. No Brasil, ele é conhecido pelo romance “As oito montanhas” (Intrínseca), vencedor do Prêmio Strega. O livro conta a história de um menino que vê sua vida transformada pelo montanhismo e por uma duradoura amizade, que nasce quando sua família descobre o vilarejo de Grana, aos pés do Monte Rosa, norte da Itália.

A escritora brasileira Martha Batalha, colunista do Segundo Caderno, também foi comparada à criadora da tetralogia napolitana. Motivo: tanto em “A vida invisível de Eurídice Gusmão” (2016), lançado em 20 países e adaptado para o cinema, quanto em “Nunca houve um castelo” (2018), a autora usou a cidade de sua infância, o Rio, como cenário para histórias que atravessam décadas e são protagonizadas por mulheres. A autora analisa que tentar replicar um fenômeno de vendas é natural e, ao mesmo tempo, muito difícil:

— O mercado editorial quer sempre encontrar a nova Ferrante, J.K. Rowling (da série “Harry Potter) ou Sally Rooney (autora de “Pessoas normais). Mas também sabe que os bons autores são insubstituíveis — diz Martha. — É a originalidade, da voz, do conteúdo e do ponto de vista, a responsável pelo misterioso algoritmo fazedor de best-sellers.

Colaboraram Bolívar Torres e Emiliano Urbim

Capa de "Pança de burro", romance de estreia da escritora espanhola Andrea Abreu, publicado pela Companhia das Letras — Foto: Reprodução
Capa de "Pança de burro", romance de estreia da escritora espanhola Andrea Abreu, publicado pela Companhia das Letras — Foto: Reprodução

Serviço:

"Pança de burro"

Autora: Andrea Abreu. Tradução: Livia Deorsola. Editora: Companhia das Letras. Páginas: 192. Preço: R$ 69,90.

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