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Por Ruan de Sousa Gabriel — São Paulo


A escritora britânica Rachel Cusk — Foto: Divulgação
A escritora britânica Rachel Cusk — Foto: Divulgação

Após a decisão do Reino Unido de deixar a União Europeia, o Brexit, a escritora britânica preferiu se refugiar do avanço da extrema direita em Paris. No mês passado, porém, ela precisou voltar a sua casa em Norfolk, na Inglaterra, para resolver alguns problemas. Acompanhou de lá as eleições francesas. Passou os dias nervosa com a possibilidade de que a ultradireitista Marine Le Pen vencesse o moderado Emmanuel Macron na disputa pela presidência.

— Se Le Pen tivesse ganhado, me sentiria pessoalmente responsável. Parece que sempre me mudo para um lugar novo, o fascismo vence por lá — diz Cusk em entrevista ao GLOBO, de Norfolk.

Na França, Cusk descobriu autoras que investigam o que é ser uma mulher. Ela própria está interessada nesse tipo de pesquisa. Em seu romance mais recente, “A segunda casa”, recém-lançado no Brasil pela Todavia, ela questiona a influência de artistas homens sobre artistas mulheres. A narradora é M, uma escritora de meia-idade que reforma sua segunda casa para receber artistas como L, um pintor um tanto desagradável. O romance é inspirado nas memórias da mecenas americana Mabel Dogde Luhan, que fundou uma colônia artística em Taos, no México, e recebeu o poeta D.H. Lawrence, autor de “O amante de Lady Chatterley”.

“Segunda casa” é mais uma virada na carreira de Cusk. Após seus bem-sucedidos primeiros romances, ela causou escândalo ao descrever o fardo da maternidade e narrar seu divórcio nos livros “A Life’s Worth: On Becoming a Mother” e “Aftermath: On Marriage and Separation”, inéditos no Brasil. Foi processada por um conterrâneo que se reconheceu em um dos personagens de “The Last Supper”, relato de uma viagem à Itália, Cusk reconquistou a crítica com a trilogia composta pelos romances “Esboço”, “Trânsito” e “Mérito”, também publicados pela Todavia, nos quais o leitor aprende sobre a discreta protagonista Faye (também uma escritora de meia-idade) por meio de suas conversas com outras pessoas.

Ao GLOBO, Cusk comentou o sucesso recente de narrativas sobre maternidade e sua esperança de se tornar amiga íntima de Clarice Lispector.

Você não tinha se mudado para Paris após o Brexit?

Sim. Mas vim para a Inglaterra resolver algumas pendências e acompanhei as eleições daqui. Se Le Pen tivesse ganhado, me sentiria pessoalmente responsável. Parece que sempre me mudo para um lugar novo, o fascismo vence por lá (risos). Por sorte, isso não aconteceu. A França é muito diferente da Inglaterra. Não é só idioma, mas também os maneirismos, a etiqueta, a visão de mundo. Na minha idade é difícil mudar, então tem sido interessante me acostumar com tanta novidade.

O que te atraiu em Mabel Dodge Luhan?

A voz dela. Ela criou uma colônia artista em Taos e passou muito tempo perto de gente famosa. Queria facilitar o processo criativo deles. Tentava descobrir quem era se aproximando dessas pessoas. “Lorenzo in Taos” é um dos volumes dos diários dela. É uma relíquia. Um livro morto, ignorado, fora de catálogo. Mas, lendo esse livro, percebemos que a voz única de Luhan continua viva. Essa estranha combinação entre um livro morto narrado por uma voz viva me fez pensar na ancestralidade feminina, nas existências femininas que não são celebradas.

No início de “Segunda casa”, M tem uma epifania diante de uma pintura de L Você já teve esse tipo de experiência?

Sim, repetidas vezes. No caso de M, eu estava interessada em entender a apreensão do feminino pela arte. Como é, para uma mulher, sentir-se completa, compreendida, por uma obra de arte feita por um homem, que reflete os valores masculinos da feminilidade? Como é ser uma mulher artista influenciada por artistas homens? M vê que uma nova realidade está sendo criada para as mulheres do futuro. Tem consciência de sua filha vai enfrentar menos problemas do que ela. Essa quase uma tristeza feminina: temos orgulho das mudanças para as quais contribuímos, mas sabemos que elas vão só vão beneficiar aquelas que vierem depois de nós. É como se fôssemos usadas pela História.

Como você lida com a influência masculina?

Tem sido um percurso interessante. Embora tivéssemos Virginia Woolf e muitas escritoras bem-sucedidas, a influência masculina era automática quando comecei a escrever. A feminilidade era uma desvantagem. Como a cultura é ditada pelos homens, a coisa mais óbvia a se fazer é segui-los, é ir aonde está o poder. Mas isso tem mudado. Gerações de artistas mulheres compraram a briga. Mostraram até que é possível ser artista e mãe (o que talvez seja pedir demais de um ser humano).

Você lê mais mulheres hoje?

Já não leio tanto (risos). Tento aproveitar meu tempo de outras formas. Ando interessada por artes visuais e por aquilo que uma imagem pode dizer e um texto não. Desde que me mudei para a França, encontrei uma outra tradição de escrita feminina e tenho tentado entender o que é ser mulher lá. Procuro pela resposta em textos femininos. Na tradição francesa, o exame do eu não foi completamente marginalizado ou destruído pelo capitalismo, como no mundo anglófono. Aquele caminho proustiano ainda existe e tem sido seguido por muitas mulheres que se dedicam a examinar intimamente a experiência feminina.

Esse exame do eu feminino — e as epifanias — são marcas de Clarice Lispector. Você conhece a obra dela?

Não muito. Clarice é um projeto em andamento (risos). Tentei lê-la, mas falhei em entender seus propósitos. Talvez no futuro eu consiga entendê-la melhor. Ainda não me sinto segura. A liberdade com que ela abandona o literal é o oposto do meu processo criativo. Mas sinto que Clarice Lispector e eu ainda seremos grandes amigas.

Você disse que está interessada em artes visuais. De que pintores você gosta?

Gosto de Georg Baselitz, que pinta tudo de ponta-cabeça. Me interesso pela influência da biografia nas obras dos artistas. Em meu livro “The Last Supper”, falo de Giorgio Vasari, pintor italiano que escreveu biografias dos renascentistas porque acreditavam que elas seriam importantes para entender a obra deles. Na literatura, é mais fácil descobrir como as experiências do autor se refletem no texto. Na pintura, temos que procurar mais. A imagem tem que abrir espaço para a linguagem.

Você foi atacada por publicar livros de não ficção sobre a maternidade. No entanto, cada vez mais autoras têm escrito de forma honesta sobre ser mãe e colhido elogios do público da crítica. Várias delas citam você como uma influência. A cultura está mais disposta a debater a maternidade?

A triste verdade é que as primeiras pessoas que sugerem uma nova atitude em relação a coisas que a sociedade se esforça para não questionar — e a maternidade talvez seja a maior delas — serão desacreditadas e silenciadas. Antes que a mudança social ocorra, há um ataque violento às novas verdades. Depois, as pessoas começam a aceitar. Não duvido que o meu livro e outros livros tornaram possível escrever sobre maternidade em um ambiente mais civilizado. Gosto de saber que o que eu escrevi significou alguma coisa, contribuiu para um avanço, porque muitos artistas só são valorizados depois de mortos.

Sempre há casas sendo reformadas nos seus livros. M reforma sua segunda casa para receber artistas. Na trilogia, Faye arruma confusão com os vizinhos por causa das obras em seu apartamento. Por que usar casas como artifício literário?

Há uma relação clara entre casa e escrita. Um escritor precisa de um lugar para escrever sem ser perturbado. Um teto todo seu, como disse Virginia Woolf. Isso é especialmente complicado para as mulheres. Para nós, a casa é o lugar da desigualdade, da limitação, da servidão, do trabalho doméstico. Para uma artista mulher, a casa é o lugar onde ela pode se expressar e é também o lugar do qual que ela deve cuidar, pois ele estará exposto ao julgamento alheio. Várias mulheres já me disseram que invejam aquelas não se importam se a casa está bagunçada ou não. Elas se envergonham de suas casas arrumadas porque não se importar com a bagunça indicaria que uma mulher é mais livre, mais criativa.

Capa de "Segunda casa", novo romance da escritora britânica Rachel Cusk, publicado pela Todavia — Foto: Reprodução
Capa de "Segunda casa", novo romance da escritora britânica Rachel Cusk, publicado pela Todavia — Foto: Reprodução

Serviço:

Autora: Rachel Cusk. Tradução: Mariana Delfini. Editora: Todavia. Páginas: 168. Preço: R$ 62,90.

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