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Por Ruan de Sousa Gabriel — São Paulo

Numa noite de segunda-feira recente, um grupo de 19 pessoas se reuniu virtualmente para discutir um romance de 864 páginas que acompanha como duas famílias são afetadas pelos eventos históricos que abalaram a China na primeira metade do século XX, desde a queda da dinastia Machu à Revolução Comunista. Publicado em 1993, “Na terra do cervo branco”, de Chen Zhongshi, transformou seu autor em celebridade literária, ganhou prêmio e virou ópera, filme e série de TV na China. Também agradou os participantes do Clube do Livro da Shūmiàn, plataforma que pretende estreitar os laços entre o gigante asiático e a América Latina.

Durante mais de uma hora de debate, o grupo comentou as semelhanças entre as culturas de províncias chinesas e do interior do Brasil, lamentou a ausência de uma árvore genealógica que ajudasse o leitor a não confundir os personagens e concluiu que desconhecer a História da China não atrapalhava a leitura — assim como a ignorância sobre a Regência Britânica, no início do século XIX, não afasta ninguém da literatura da escritora inglesa Jane Austen (1775-1817).

Como Dan Brown

O Clube do Livro da Shūmiàn estreou em maio do ano passado e se dedica à leitura de ficção e não ficção de autores chineses. Além dos encontros mensais, o Clube do Livro mantém um grupo no WhatsApp com mais de cem membros. E eles estão com sorte: cada vez mais autores chineses têm chegado às livrarias brasileiras. Tem livro para todos.

Quer ler clássicos da filosofia chinesa? A Unesp já publicou Confúcio e Laozi. Um romance policial? A Companhia das Letras acaba de lançar “O criptógrafo”, de Mai Jia, o contemporâneo de mais sucesso em seu país, já comparado a Dan Brown. Prefere poesia? A Moinhos acaba de editar títulos de dois poetas contemporâneos: “Não acredito em trovões”, de Bei Dao, um dos maiores nomes da lírica chinesa pós-Revolução Cultural, e “O além da montanha”, de Yao Feng, de Macau, que escreve em português e traduz Carlos Drummond de Andrade e Fernando Pessoa. Está atrás de títulos infantis? Então conheça o catálogo da Cai-Cai.

Entre tantos autores recém-publicados no Brasil, destaca-se Lu Xun (1881-1936). O livro de ensaios “Flores matinais colhidas ao entardecer” inaugurou a série “Clássicos da literatura chinesa”, da Editora Unicamp, em parceria com o Instituto Confúcio.

Já a Carambaia acaba de lançar “O diário de um louco: contos completos de Lu Xun”. No posfácio, a professora da USP Ho Ye Chia conta que o escritor foi considerado o “maior sábio chinês” (maior do que Confúcio) por Mao Tsé-Tung, apesar de seus atritos com os comunistas. Lu Xun defendia a modernização do país e escrevia “como se estivesse gritando, para acordar os chineses que dormiam”.

Autores popstars

No exterior, a ficção produzida na China faz sucesso há algum tempo. No Brasil, a popularidade da cultura chinesa está em alta, mas não se compara à dos mangás japoneses ou à do K-pop e dos doramas coreanos.

Nathan Matos, editor da Moinhos, desconfia que tudo não passe de “uma feliz coincidência”. Além de poesia, a editora também lançou “Contos de fantasia chineses”, coletânea compilada por Pu Songling entre os séculos XVII e XVIII. As vendas surpreenderam.

— Fizemos a primeira tiragem só de 500 exemplares e vendeu tudo em um mês! A Moinhos não é a Companhia das Letras. Para nós, vender em um mês 500 exemplares de um livro de 400 páginas, que custa R$ 85, é muito — comemora Matos. — Há um nicho aí.

Thaísa Burani, fundadora da editora Cai-Cai, já identificou o perfil de parte do público que compra livros chineses: jovens adultos, de todo o país, que estudam mandarim, procuram oportunidades profissionais no Oriente e “consomem tudo o que diz respeito à China”, de filmes e séries de TV a podcasts.

Inspirada por um lema de Confúcio — “Se você tem planos para uma vida inteira, eduque as crianças” —, a Cai-Cai estreou há um ano com o objetivo de publicar a literatura infantil produzida fora da Europa e dos EUA. Já tem sete livros do catálogo, e seis são chineses, como “Eu sou Hua Mulan”, sobre a história que inspirou a animação da Disney. Algumas edições são bilíngues. Após anos editando literatura infantojuvenil, Burani descobriu a força do mercado editorial chinês numa visita à Feira do Livro Infantil de Xangai, em 2019.

— Vi autores infantis entrando na Feira escoltados por seguranças, tamanha a multidão atrás de autógrafos. Parecia o Mauricio de Sousa na Bienal — conta ela. — A China é muito forte nos livros que chamamos de “informativos”, que estão entre os didáticos e os literários. Os chineses não são nada chatos, têm texto e ilustrações de qualidade. A criança lê sem perceber que também está estudando.

Ilustração de Yu Rong para o livro “Eu sou Hua Mulan”, publicado pela editora Cai-Cai, sobre a lenda que inspirou filme da Disne — Foto: Divulgação
Ilustração de Yu Rong para o livro “Eu sou Hua Mulan”, publicado pela editora Cai-Cai, sobre a lenda que inspirou filme da Disne — Foto: Divulgação

Diretor editorial da Estação Liberdade, que publicou “Na terra do cervo branco”, Angel Bojadsen estima que a presença de livros chineses por aqui só deve aumentar. A editora vai lançar “História de uma vida”, novela autobiográfica de Lao She, e um contemporâneo “ligado ao Nordeste gelado da China, com toques de Beckett e Ionesco, comparado a Murakami”, que Bojadsen prefere não divulgar ainda. Ele afirma que a escassez de tradutores deve ser superada em breve e que “não há como ignorar o que se faz num país com uns 20% da população mundial e mercado editorial em rápida consolidação.”

Já a Globo Livros aposta na não ficção e promete um título sobre o futuro da inteligência artificial assinado pelo escritor Chen Qiufan e pelo ex-CEO do Google China Kai-Fu Lee.

Luis Antonio Paulino, diretor do Instituto Confúcio na Unesp, garante: conhecer o pensamento chinês é fundamental para fazer negócios e manter relações com o país.

— Não dá para entender a política externa chinesa com referenciais teóricos ocidentais. A chave para entender a China está na filosofia que eles vêm desenvolvendo há cinco mil anos — diz Paulino.

Ligado ao Ministério da Educação da China, o Instituto Confúcio tem a missão de promover a língua e a cultura chinesas mundo afora. No Brasil, está presente em universidades como a PUC-Rio e tem parcerias com as editoras da Unicamp e da Unesp, que já publicou títulos de Confúcio e Laozi e a primeira tradução para uma língua não ocidental de “O imortal do Sul da China”, de Zhuang Zhou, um dos textos fundadores do taoismo.

Para Maurício Santoro, professor de relações internacionais da Uerj, “a literatura é uma porta de entrada para discussões sobre a política, a economia e os dilemas da China”.

No início, o interesse de Santoro pela China era profissional, apenas um objeto de pesquisa. Com o tempo, o professor tomou gosto pela cultura chinesa. Tanto que vai publicar um ensaio sobre como a História recente da China é retratada na obra de três escritoras: Xinran, Jung Chang e Wang Anyi.

— Na China, a literatura acaba tendo um papel mais importante do que em sociedades democráticas e abertas. Se eu quiser acompanhar o debate francês, é só ler os jornais locais. De sociedades autoritárias, como a China, só nos chegam o discurso oficial ou o discurso acadêmico autorizado, que pode criticar até um limite. Apesar de eventuais problemas com a censura, a literatura nos oferece perspectivas mais críticas e visões mais matizadas da China — explica Santoro, que vai dedicar seu ensaio literário ao Clube do Livro da Shūmiàn.

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