Ao selecionar textos para a recém-lançada antologia “A escravidão na poesia brasileira: Do século XVII ao XXI”, o escritor e poeta carioca Alexei Bueno se impressionou com a quantidade de sinônimos ou quase sinônimos de chicote que encontrou: látego, azorrague, açoite, chibata, flagelo, peia-boi, ripeiro, sardinheta, baraço, buranhém etc..
As referências aos castigos corporais sofridos pelos negros são um dos tópicos mais frequentes na lírica brasileira sobre a escravidão. Elas aparecem em poemas de autores românticos como Castro Alves (“Dança a lúgubre coorte/ Ao som do açoite”), modernistas como Jorge de Lima (“A pele de Pai João ficou na ponta/ Dos chicotes”), populares como Catulo da Paixão Cearense (“no preto, no molecote,/ e sem piedade ataca/ cem lambadas de chicote!”) e contemporâneos como Henrique Marques Samyn (“a morte entre mil vergastadas”).
Bueno descobriu ainda um raro poema que descrevia a violência psicológica e moral do cativeiro: “O escravo”, do romântico Fagundes Varela. “Os ferros e os açoites/ Mataram-te a razão”, exclamam os versos.
— É um poema que me fascina, pois é o único que conheço a tratar não das misérias físicas do cativo, mas da destruição de sua alma, do seu aniquilamento interno. É uma obra-prima, um dos maiores momentos da poesia brasileira — afirma.
Parte da paisagem
“A escravidão da poesia brasileira” reúne mais de 200 poemas assinados por 81 poetas: de Tomás Antônio Gonzaga a Machado de Assis, de Maria Firmina dos Reis a Cecília Meireles. Seis deles estão vivos: Carlos Assumpção, Abelardo Rodrigues, Edimilson de Almeida Pereira, Iacyr Anderson Freitas, Carlos Newton Júnior e Henriques Marques Samyn. O campeão da longa lista é Castro Alves. O autor de “O navio negreiro” tem 22 poemas reproduzidos no livro.
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Ao lado de obras-primas da literatura brasileira, como “Essa negra Fulô”, de Jorge de Lima, a coletânea também apresenta textos de autores já esquecidos e poemas de intervenção, sem maior valor estético, publicados apenas na imprensa, incluídos na antologia por sua “importância histórica”.
— A literatura não é composta apenas por seus nomes mais altos, como Fagundes Varela e Castro Alves. Um poeta menor como Melo Morais Filho fez em seu livro “Cantos do Equador”, de 1880, um levantamento tão exaustivo (e tão esquecido) das temáticas relativas à escravidão que não poderia deixar de aparecer no livro, embora seu valor exclusivamente estético seja limitado — explica Bueno.
A leitura da antologia mostra como a escravidão foi retratada em diferentes épocas e por movimentos literários distintos. No período colonial, poetas barrocos e árcades, como Gregório de Matos e Alvarenga Peixoto, descreviam a escravidão como parte da paisagem.
No século XIX, os românticos (Bernardo Guimarães, Laurindo Rabelo) e, mais tarde, os parnasianos (Raimundo Correia, Vicente de Carvalho) e os simbolistas (Cruz e Sousa) abraçaram o abolicionismo. Após o 13 de Maio, a escravidão quase sumiu da poesia brasileira.
O tema foi resgatado pelos modernistas, que se voltaram para a História para pensar a formação nacional. A partir dos anos 1940, a memória da escravidão surge com força na lírica militante de poetas ligados aos movimentos negros, como Solano Trindade e Carlos Assumpção.
— A literatura é um produto de seu tempo. Para além da singularidade de cada autor, é importante considerar elementos estéticos e sociais — explica Henrique Marques Samyn. — No século XIX, os escritores conviviam diariamente com escravidão e o discurso abolicionista tinha como público uma elite letrada branca. A esses elementos, se associaram características formais e retóricas da poesia romântica.
Poeta mais jovem da antologia, nascido em 1980, Samyn é autor de “Levante”, livro de poemas que retrata a trajetória dos negros no Brasil.
— Na poesia contemporânea, a escravidão é comumente tratada como uma herança histórica com a qual é preciso lidar. Com o surgimento dos movimentos negros, formou-se um outro público leitor, interessado em uma poesia militante — diz o poeta.
Dores do presente
Segundo Bueno, aparecem em “Levante” todos os principais temas tratados pela poesia brasileira que refletiu sobre a escravidão: o exílio forçado, a travessia atlântica, as sevícias físicas, a profanação da mulher, a separação das famílias, as revoltas e fugas, figuras histórias como Zumbi dos Palmares, reações a leis como a do Sexagenário e a do Ventre Livre, o túmulo do escravo.
Os poemas de Samyn incluídos na antologia têm títulos como “Suplício”, “Açoite” e “Tronco”.
— Se há nesses poemas referências a suplícios e horrores, há também uma valorização da resistência. “Suplício” descreve a marcha de um chefe de quilombo aprisionado que não cede a seus algozes — diz Samyn. — As dores do passado construíram nosso presente. Não podemos esquecê-las nem permitir que elas nos definam. Elas alimentam nossa luta atual por liberdade.
![Capa da antologia "A escravidão na poesia brasileira: do século XVII ao XXI", organizada por Alexei Bueno e publicada pela Record — Foto: Divulgação](https://s2-oglobo.glbimg.com/YJUfNpfFvZvfePR0niDbEOvsW6M=/0x0:1832x2718/984x0/smart/filters:strip_icc()/i.s3.glbimg.com/v1/AUTH_da025474c0c44edd99332dddb09cabe8/internal_photos/bs/2022/h/H/3e5NwfTvWHHltGKKgwWA/9786555873726.jpg)
Serviço:
"A escravidão na poesia brasileira: do século XVII ao XXI".
Organizador: Alexei Bueno. Editora: Record. Páginas: 714. Preço: R$ 89,90.