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Por Bolívar Torres — Rio de Janeiro

O título de “Pode um LGBTQIA+ ser super-herói no Brasil?” (Devires), do pesquisador gaúcho Christian Gonzatti, é uma apropriação da obra da indiana Gayatri Spivak “Pode o subalterno falar?”. Com ele, porém, o doutor em Ciências da Comunicação lança uma falsa pergunta. Gonzatti não quer indagar se a tal existência é possível (porque ele, pelo menos, tem certeza de que é), mas refletir sobre os modos que possibilitam esse personagem no atual cenário político, em que a cultura pop se tornou um campo de batalha envolvendo gênero e sexualidade.

O livro tem como mote a tentativa de censura na Bienal do Livro do Rio em 2019, quando o então prefeito Marcelo Crivella buscou sem sucesso proibir a HQ da Marvel “Vingadores: a cruzada das crianças”, que trazia um beijo gay entre super-heróis. O caso é investigado por Gonzatti como um “ciberacontecimento”, já que o incômodo com as representações positivas de personagens LGBTQIA+ ocorreu principalmente na internet. Criador do perfil Diversidade Nerd, com mais de 350 mil seguidores no TikTok, o pesquisador faz uma radiografia das disputas culturais, que opõem de um lado a busca por representatividade e, de outro, uma cruzada conservadora contra a diversidade.

— No Brasil do ódio contra a diversidade, toda pessoa LGBTQIA+ é super-heroína — diz o pesquisador.

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O caso dos super-heróis LGBTQIA+ na Bienal mobilizou a sociedade. Por ordem da prefeitura, guardas municipais entraram no evento para recolher os livros. Como reação, o público protestou no Riocentro, enquanto as vendas da HQ explodiram. A polêmica também desencadeou uma guerra de liminares, que por fim acabou decidindo contra a censura.

Reflexo do poder

O pesquisador e doutor em Comunicação Christian Gonzatti, autor de "Pode um LGBTQIA+ ser super-herói no Brasil?" — Foto: Divulgação
O pesquisador e doutor em Comunicação Christian Gonzatti, autor de "Pode um LGBTQIA+ ser super-herói no Brasil?" — Foto: Divulgação

Gonzatti mapeia como, fora do evento, esses embates continuaram no mundo virtual, com articulações entre cultura pop e nerd. Ainda que os eventos da Bienal tenham escancarado essas disputas para o grande público, ela já vinha se desenvolvendo há um bom tempo entre diversos grupos, especialmente na internet.

— A cultura pop sempre foi reflexo de relações de poder e dos valores da sociedade. Funciona, inclusive, mais como um termômetro das transformações sociais do que como um dispositivo de mudança — diz Gonzatti. — No entanto, por estar relacionado a valores mais hegemônicos e que são consumidos de maneira mais fácil, ela sempre acabou conservando em seus espaços de visibilidades os marcadores com maior força estrutural na sociedade e que são alicerces do capitalismo: a masculinidade, a branquitude, a cisgeneridade, a heterossexualidade.

Com os avanços de movimentos sociais, explica o pesquisador, a cultura pop passou a criar personagens mais diversos. Da mesma forma, produções do tipo dão bom retorno financeiro atualmente. Segundo pesquisa de um streaming internacional, 69% dos jovens brasileiros buscam representatividade nos produtos midiáticos. Por outro lado, surgiram grupos que buscam “conservar um lugar de poder e manter determinados corpos renegados à precariedade”, como aponta Gonzatti.

Isso fez com que a diversidade fosse colocada em disputa na cultura pop e em suas ramificações, como a cultura nerd. Um exemplo são as brigas de fãs em torno das releituras wokes (“conscientes”, em tradução livre) de produções clássicas, como uma versão mais feminista do desenho “He-Man”, ou até a mudança de raça e sexualidade de certos personagens já estabelecidos — fãs de “Harry Potter” ficaram divididos quando a criadora da saga, J.K. Rowling, revelou que a personagem Hermione é negra.

— Algumas reações a essas mudanças podem ser mobilizadas por um conservadorismo mais ingênuo, que quer conservar uma memória da infância, e que se incomoda, por exemplo, com uma personagem como (a Pequena Sereia) Ariel não ser branca e ruiva — observa Gonzatti. — O problema é que ele ignora alguns pressupostos básicos do consumo ficcional, como o de que uma nova versão não apaga a existência do original. Mas esse conservadorismo ingênuo também pode levar a um conservadorismo reacionário e explosivo: o desejo de expelir a diferença da cultura e as suas demandas.

Com o Diversidade Nerd, o próprio Gonzatti já esteve no meio do tiroteio, recebendo ameaças de morte (mas também mensagens carinhosas) por discutir a representação LGBTQIA+ na cultura pop. Já em seu livro, ele aponta que essa reação conservadora pode se dar tanto através de grupos organizados como por espectadores isolados:

— No caso da tentativa de censura na Bienal, há grupos organizados e que cooptaram o incômodo com o “beijo gay” como pauta política e há também pessoas sem vínculo com esses grupos que, mobilizadas por crenças desinformativas, performam esse incômodo por acreditarem que realmente estão protegendo crianças fazendo isso.

Apelo ao moralismo

"Pode um LGBTQIA+ ser super-herói no Brasil?", livro de Christian Gonzatti — Foto: Reprodução
"Pode um LGBTQIA+ ser super-herói no Brasil?", livro de Christian Gonzatti — Foto: Reprodução

O fato é que as guerras culturais se tornaram um fator importante da política. Nos EUA, o governador da Flórida, Ron de Santis, está usando a sua queda de braço contra a Disney para ganhar projeção nacional entre conservadores. Ele assinou uma lei que acabará com o estatuto especial da Disney na região (que permite atuar como governo local), depois que o diretor-executivo da gigante do entretenimento criticou uma medida que proibia o ensino de educação sexual e identidade de gênero no ensino fundamental.

— É uma pauta que apela para o moralismo e se aproveita da possibilidade de usar a ideia da “criança sob ameaça” como bandeira política — diz Gonzatti. — Na semiótica da cultura, uma das lentes teóricas que me acompanham no estudo do livro, o semioticista Iuri Lotman explica que o núcleo da cultura pode fabricar uma fronteira, uma ameaça, para assim manter o seu status de núcleo, de poder, de rigidez, e assim conservar-se. É o que esses grupos políticos fazem ao fabricar a ideia de que as representações LGBTQIA+ são um perigo, que pretendem sexualizar crianças, estimular pedófilos. Fabricam uma ameaça e vendem uma solução.

“Pode um LGBTQIA+ ser super-herói no Brasil?”
Autor: Christian Gonzatti. Editora: Devires. Páginas: 338. Preço: R$ 54,90.

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