O romance “O marinheiro que perdeu as graças do mar” parece um mecanismo de alta precisão. Como um relógio. Dividido entre o verão e o inverno, a juventude e a vida adulta, o mar e a terra, o livro de Yukio Mishima (1925-1970) subverte essas oposições avançando de modo seguro, com um estilo contido e exato que o torna um clássico.
A personagem-título do livro é Ryuji Tsukazaki, um marinheiro convicto de estar destinado a algum tipo de glória, até conhecer Fusako. Viúva, ela é dona de uma loja de artigos importados do Ocidente e mãe de um garoto de 13 anos, Noboru. É o menino quem se interessa por navios e leva Fusako ao porto, onde ela conhece Tsukazaki e começa um relacionamento com o marinheiro.
As duas partes do livro são dedicadas a estações: o verão, quando o casal começa a se aproximar, e o inverno. Separando-as, no centro de uma estrutura relativamente simétrica, há uma viagem ao Porto de Santos, no Brasil, a meio mundo de distância. A viagem de Tsukazaki para cá permite o amadurecimento do romance entre ele e a viúva, que trocam cartas nesse período, embora o Brasil não apareça explicitamente mais que nessa menção e no souvenir que Noboru ganha de presente: um pequeno jacaré empalhado.
Drama amoroso-familiar
Aliás, Noboru é tão protagonista quanto Tsukazaki. Entramos no universo do romance por seus olhos, já que o primeiro capítulo narra sua descoberta de um pequeno e discreto buraco na parede do quarto, por onde pode espiar o cômodo da mãe. Da mesma forma, vários capítulos o mostram junto ao seu círculo de amigos, todos garotos de 13 anos. Entre eles se destaca o “chefe”, responsável por articular a filosofia do grupo: uma condenação à vida “medíocre” e “vil” dos adultos, rotineira e desencantada.
No Teatro Poeira: Marieta Severo, Renata Sorrah, Andrea Beltrão e Ana Baird estreiam peça que celebra a arte 'sufocada no Brasil'
Tsukazaki se tornará o caso exemplar da “degradação” condenada pelos garotos: disponível à glória no mar — em Mishima a glória e a beleza nunca estão longe de uma morte heroica, de preferência durante a juventude —, o marinheiro a deixa de lado por amor a Fusako, apegando-se à vida em terra. Assim, de maneira hábil e sutil, Mishima confronta opostos como vida e morte, mar e terra, juventude e maturidade, pares afinal embaralhados pelo destaque a figuras intermediárias: por exemplo o porto, cujas sirenes se fazem ouvir por todo o romance, ou então os adolescentes, nem crianças nem adultos.
Sutileza descreve bem uma das maiores qualidades deste livro enxuto. Basta observar como Mishima espalha pistas que conectam esse drama amoroso-familiar a um contexto mais amplo. A casa de Fusako e Noboru fora confiscada pelas tropas americanas — possível explicação do buraco na parede. Abundam nomes em inglês na loja de Fusako e nos prédios da cidade. O terreno onde se passa o clímax do livro, no último capítulo, era uma base do Exército dos EUA. A sombra da guerra, portanto, se estende sobre o desentendimento geracional de Noboru contra Fusako e Tsukazaki.
Tanto quanto a sutileza, o estilo de Mishima, que foi também dramaturgo importante e ator, está entre os pontos fortes do romance, pela sua clareza e beleza plástica. Embora uma ou outra vez se sinta um excesso da mão do narrador, as imagens se adequam perfeitamente ao assunto retratado, em geral extraídas do universo náutico, e falam por si na maioria absoluta dos trechos.
O jacaré empalhado, por exemplo, tem “poeira acumulada nas bordas dos globos oculares em vidro vermelho” (p. 105). Como diz o romance, ele ficou muito tempo na prateleira da loja. Mas a imagem escolhida por Mishima também condensa um alerta a Noboru: o presente de Tsukazaki é uma criatura morta, empalhada por indígenas brasileiros, uma mercadoria que já foi um ser vivo encantador, mas hoje não poderia enxergar nem se tivesse olhos. Não por acaso, um animal que vive entre a terra e a água.
É com esse tipo de joia literária tão meticulosa quanto sutil que se constrói “O marinheiro que perdeu as graças do mar”. Poético e habilidoso, capaz de criar beleza e suspense, disposto a pôr em atrito a permanência desencantada e a brevidade fulgurante, o romance de Yukio Mishima é uma ótima sugestão para quem quer conhecer um dos autores japoneses mais importantes do século XX.
“O marinheiro que perdeu as graças do mar”
Autor: Yukio Mishima. Tradução: Jefferson José Teixeira. Editora: Estação Liberdade. Páginas: 176. Preço: R$ 54. Cotação: ótima.