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Por Bolívar Torres — Rio de Janeiro

A obsessão do prisma identitário no debate contemporâneo é o assunto de “O eu soberano: Ensaio sobre as derivas identitárias” (Zahar), de Elisabeth Roudinesco. A historiadora e psicanalista francesa, que participa do Fronteiras do Pensamento em outubro (dia 17 em São Paulo e dia 28 em uma apresentação on-line), investiga como, segundo ela, a militância progressista teria perdido o seu rumo ao se fixar em infinitos conceitos de gênero e raça e cair no que ela chama de “os labirintos da interseccionalidade”. O identitarismo da extrema-direita também está em pauta, mostrando como grupos exploram conceitos do século XIX sobre raça e território. Roudinesco conversou com O GLOBO por Zoom.

Muitos veem seu livro como um ataque ao identitarismo, mas ele soa mais como uma busca por diálogo. A senhora ressalta que essas políticas começaram bem, mas lamenta que tenham “derrapado”. Como isso aconteceu?

De maneira geral, as revoltas progressistas começam muito bem e terminam muito mal. Os movimentos identitários lutam por mais direitos, o que é muito bom. Mas, em algum momento, eles se desviaram quando se isolaram em si mesmos. A partir de 1989, depois da queda do Muro de Berlim, vemos as rebeliões da finitude de si. Conto em forma de anedota minha viagem aos EUA em 1995, em que cada pessoa tinha o seu regime, sua hora para dormir, sua maneira de comer. O coletivo se dissolvia em uma reivindicação de si. E o feminismo já se mostrava mais identitário. No início, é normal que se reivindique uma identidade, uma cultura. Mas em algum momento isso se torna uma essencialização da identidade.

No livro, a senhora tenta mostrar como o identitarismo é um desvio dos “cultural studies” dos anos 1970...

Eu disseco textos de autores dos movimentos atuais, como Homi Bhabha, Gayatri Spivak e Judith Butler, para entender como eles reinterpretaram de maneira identitária as ideias de pensadores dos anos 1970, como Michel Foucault, Edward Saïd e outros. Achava importante entender como se partiu de um ponto para chegar a outro. Mas eu não ataco esses autores, são todos grandes professores que respeito.

Quais são suas principais discordâncias com eles?

Não estou de acordo, por exemplo, que se elimine nas democracias ocidentais o que foi um movimento anti-colonialismo. Como essa tendência de achar que Sartre não podia ser anticolonial por ser branco.

A sua tese é de que o mundo nunca esteve tão uniformizado e, ao mesmo tempo, nunca esteve tão fragmentado pelo identitarismo. Pode explicar esse paradoxo?

Minha tese central é que essa uniformização desastrosa, esse excesso de crença em um universalismo abstrato, provoca por tabela uma fragmentação das identidades e uma confusão entre coisas diferentes. Podemos até falar em uma identidade negra, cultural e não biológica. Podemos falar em uma identidade cultural quando homossexuais compartilham um sentimento de união para lutar contra a discriminação. Mas hoje, por exemplo, falamos de deficiência física como se fosse uma identidade, e ela não é.

A senhora chega a fazer, inclusive, um apelo para que se pare de criar nomenclaturas para tudo.

Chamei essa multiplicação insensata de neologismos de parler obscure (falar obscuro). Eu mostrei que isso também tinha uma relação com a evolução catastrófica da psiquiatria, que havia multiplicado os comportamentos em vez das entidades subjetivas universais. Quando você tem, por exemplo, toda essa algaravia usada pelos movimentos trans, cis-gênero, anti-gênero... é preciso fazer a crítica. Isso não significa ser contra o movimento, e sim desconfiar do parler obscure, que é ter o ar de dizer uma coisa quando se está dizendo outra. Hoje todas essas terminologias são multiplicáveis ao infinito. Vai chegar num ponto em que até a cor da camiseta será tratada como identidade.

Uma das críticas ao seu livro é que ele apoiaria um “universalismo branco”, que por sua vez não levaria em conta o anseio das minorias...

Não é porque a Revolução Francesa inventou a declaração dos direitos humanos que ela pertence à França, ou que é francesa e branca. E, em 1948, ela foi renovada pela ONU. É universal. O que é universal? Não é a concepção francesa da liberdade. É o desejo de liberdade dos povos. E achando que ela é branca ocidental, o que trazemos? O racismo. Redesenhamos por certos lados uma diferença essencializada. É verdade que os países ocidentais que inventaram a democracia politicamente se serviram de princípios da democracia e dos direitos humanos para colonizar outros povos. Mas não se deve jogar fora o bebê junto com a água. Não é porque com a mesma teoria fomos colonialistas que a teoria é colonialista.

Mas, então, quais seriam as armadilhas desse universalismo “abstrato”?

Acaba sendo uma ilusão da totalidade dos povos. Cada um se acredita universal fazendo nacionalismo. Por exemplo, temos hoje, em um mundo globalizado, uma internacional reacionária dos nacionalistas. É extraordinário que uma extrema-direita judia israelense tenha se juntado às posições de Eric Zemmour (candidato de extrema-direita nas últimas eleições presidenciais francesas, conhecido por relativizar o antissemitismo durante a ocupação nazista). Eles estão se juntando a ideias que levaram ao seu próprio extermínio. Temos que eliminar tanto o universalismo abstrato quanto o diferencialismo abstrato. É por isso que faço referência a Claude Lévi-Strauss. O ser humano é feito de universalidade, de diferenças, de ambiente, de social e de biologia. Isso é o universal. Os povos são destinados a se misturar em permanência.

A senhora defende uma memória comum. Mas como os povos que sofreram com o colonialismo podem contestar e ao mesmo tempo compartilhar a História com seus colonizadores?

Na França, estamos fazendo algo muito bom ao historiador Benjamin Stora, que trabalha a exploração comum dos arquivos franco-argelinos. Estamos nos dando conta de que é preciso colocar as histórias em comum, que houve malfeito dos dois lados, ainda que a França seja a principal responsável. Vale lembrar que, hoje, a França não é um país colonial. O Estado também não é racista, já que o racismo é condenado pela lei. Que a sociedade seja racista e que 40% dela vote na (candidata de extrema-direita) Marine Le Pen, eu concordo. Mas não podemos confundir o Estado com a sociedade.

O último capítulo do livro tenta provar que não há simetria entre as ameaças da extrema-direita e as do identitarismo de esquerda. Em que eles diferem?

De um lado, a extrema-esquerda fez um desvio (de lutas progressistas). Já do lado da extrema-direita, é tudo a mesma coisa. As teses da extrema-direita são parecidas com as do século XIX, é sempre uma questão de pureza, de território e de raça, ainda que não se use mais esta palavra. Agora, as duas se alimentam de forma perigosa. Traduzindo politicamente, elas não são simétricas, mas há um risco, sim, de acabarmos entre dois extremos. Em uma eleição, contudo, eu voto contra a extrema-direita, não importa qual seja o candidato do outro lado.

Falando nisso, a senhora virá ao Brasil em outubro, bem na época do primeiro turno das eleições no país. Teme turbulência?

A situação de vocês é difícil. Mas Lula é melhor do que Jean-Luc Melenchon (candidato da esquerda radical nas últimas eleições francesas). O importante é sempre derrubar os ditadores. Creio que meus amigos brasileiros não foram razoáveis em 2018, quando não votaram em peso contra a extrema-direita. Eles se abstiveram demais.

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