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Por Ruan de Sousa Gabriel — São Paulo

Para o filósofo franco-caribenho Malcolm Ferdinand, o assassinato do jornalista britânico Dom Philips e do indigenista Bruno Araújo Pereira na Amazônia, em junho, é sintoma da “dupla fratura da modernidade” analisada em seu livro “Uma ecologia decolonial”, recém-lançado no Brasil. Essa “fratura”, argumenta Ferdinand, separa as heranças da colonização e da escravidão da História da destruição ambiental desde o advento do capitalismo e inviabiliza tanto a luta ecológica quanto a antirracista. Depredação da natureza, dominação colonial e racismo são indissociáveis, diz ele. Não à toa, as investigações indicam que Dom e Bruno foram mortos por grupos interessados na exploração econômica ilegal da floresta e de terras indígenas. E as vítimas das catástrofes ambientais no Brasil (do rompimento das barragens de Mariana e Brumadinho, por exemplo) são desproporcionalmente pobres, partos e pretos.

Publicado originalmente em 2019, “Uma ecologia decolonial” recebeu elogios da filósofa e ex-Pantera Negra Angela Davis, que assina o prefácio da edição brasileira. Em entrevista ao GLOBO, Ferdinand defende a valorização das práticas ecológicas de indígenas e quilombolas.

O filósofo francês Malcom Ferdinand: "Catástrofes ambientais são construídas socialmente" — Foto: Bénédicte Roscot
O filósofo francês Malcom Ferdinand: "Catástrofes ambientais são construídas socialmente" — Foto: Bénédicte Roscot

O assassinato de Dom Phillips e Bruno Pereira é um exemplo de como a crise ecológica e projetos coloniais andam juntos?

Com certeza. Esses assassinatos são mais uma tentativa de aprofundar a dominação dos povos indígenas, impor o terror e intensificar a exploração extrativista da floresta. Para garimpar, você tem que “remover” os indígenas ou marginalizá-los. O erro indesculpável dos ambientalistas modernos é não dar a mesma importância à preservação dos ecossistemas e dos direitos e condições de vida dos povos nativos. As lutas ecológica e antirracista são indissociáveis.

Racismo e catástrofes ambientais são problemas urgentes no Brasil. Como superar a “dupla fratura da modernidade” pode nos ajudar a enfrentá-los?

Catástrofes ambientais são construídas socialmente. Reconhecer os direitos de negros e pardos a viver em áreas onde não há risco de tragédias ambientais é fundamental. As vítimas de Mariana de Brumadinho já haviam sido abandonadas antes do rompimento das barragens. Devemos questionar a incapacidade dos Estados de promover mudanças após desastres. Na maioria das vezes, esses eventos limpam o terreno para o que chamo de “capitalismo de desastre” ou “furacão colonial”. São catástrofes que prejudicam muitos, mas garantem os lucros de alguns poucos.

Por que você defende a substituição do termo Antropoceno por Negroceno, descrito como “a era geológica na qual a extensão do habitat colonial e as destruições do meio ambiente são acompanhadas pela produção material, social e política dos Negros”?

Não acho que devemos abandonar o termo Antropoceno, mas propor novas maneiras de nomear nossa era geológica. O termo Antropoceno tende a negligenciar as desigualdades que existem entre os mais poluem e os que mais sofrem. Já Negroceno mostra o que as teorias do Antropoceno escondem: a História colonial e escravocrata da modernidade. Ao sugerir esse nome, destaco as experiências de colonizados, escravizados, indígenas e sobreviventes de genocídios. As experiências, as linguagens, as práticas e as ações políticas de quem que resistiu à dominação colonial são carregadas de sabedoria ecológica e precisam ser colocadas em primeiro plano.

Como fazer isso?

Não devemos olhar as experiências quilombolas e indígenas de maneira extrativista, como se disséssemos “vocês têm algo que podemos usar”, sem, antes de mais nada, reconhecer seus direitos, suas vozes, sua História e as injustiças que eles sofrem. Esses povos criaram cosmogonias que não conhecem a divisão moderna entre natureza e cultura. Consequentemente, seus modos de habitar a terra não são tão destrutivos quando aqueles forjados pelo dualismo moderno. Pelo contrário: são formas de resistência ao capitalismo e à dominação colonial que ainda move governos e multinacionais. Estamos vivendo um momento bizarro. Queremos preservar a “natureza”, a floresta amazônica e limitar o aquecimento global enquanto continuamos invisibilizando os direitos de quilombolas e povos indígenas. Mas seria ingênuo celebrar as práticas ecológicas desses povos sem combater o racismo, a desigualdade de gênero e o capitalismo.

Capa do livro "Uma ecologia decolonial", do filósofo franco-caribenho Malcom Ferdinand, publicado pela Ubu — Foto: Reprodução
Capa do livro "Uma ecologia decolonial", do filósofo franco-caribenho Malcom Ferdinand, publicado pela Ubu — Foto: Reprodução

Serviço:

"Uma ecologia decolonial". Autor: Malcom Ferdinand. Tradução: Letícia Mei. Editora: Ubu. Páginas: 320. Preço: R$ 89,90.

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