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Por Ruan de Sousa Gabriel — São Paulo

Ninguém duvida de que, a esta altura dos acontecimentos, uma revista literária que se propusesse a apresentar 20 escritores e publicasse textos de 19 autores brancos (apenas sete mulheres), quase todos de Rio, São Paulo ou Rio Grande do Sul, seria recebida com protestos indignados. Dez anos atrás, porém, o cenário era outro. Em julho de 2012, foi lançada, na Festa Literária Internacional de Paraty, a Flip, uma edição da Granta, uma das mais prestigiosas revistas literárias do mundo, dedicada aos “20 melhores jovens escritores brasileiros”, apresentando justamente... 19 autores brancos, incluindo sete mulheres.

Fora algumas críticas aqui e ali às supostas “panelinhas” do mercado editorial, a publicação foi festejada. E com razão. A revista destacou autores que, nos anos seguintes, construíram carreiras sólidas e acumularam prêmios importantes, como Jabuti (Julián Fuks, Carol Bensimon), APCA (Ricardo Lísias, Javier Arancibia Contreras) e São Paulo de Literatura (Daniel Galera). De fato, um time de primeira linha da literatura.

Mas certo é que causa estranhamento revisitá-la uma década depois. Hoje, a diversidade é um valor inegociável para o mercado editorial e para os leitores; a produção literária das periferias é vibrante; e um dos romances mais vendidos do país nos últimos anos se passa no Brasil rural e discute nossa herança escravocrata sem economizar nas referências mágicas e na poesia: “Torto arado”, de Itamar Vieira Junior.

Outros caminhos

Os 20 autores que brilharam nas páginas daquela edição especial da Granta foram selecionados por sete jurados a partir de 247 inscrições. Editor da revista na época, Marcelo Ferroni lembra que não se tratava de um “concurso”, mas de um esforço de apresentar autores que já despontavam na cena literária brasileira, apesar de serem tão jovens: todos tinham menos de 40 anos de idade.

Ferroni afirma que, se fosse publicada hoje, certamente haveria mais diversidade (de gênero, raça, geográfica, temática etc.) na antologia, pois há muito mais diversidade — de escritores e leitores — no mercado. Isso porque, graças à internet, nunca foi tão fácil publicar e alcançar o público. Em diferentes cantos do país, editoras lançam autores periféricos que, uma década atrás, penavam para impressionar casas tradicionais do eixo Rio-São Paulo.

— Tudo hoje é mais plural: as vozes, os gêneros literários, a divulgação e o acesso à literatura. É só ver a quantidade de autores negros se destacando: Itamar Vieira Junior, Jeferson Tenório, Ana Paula Maia, Jarid Arraes — diz Ferroni, escritor premiado e publisher do Grupo Companhia das Letras. — Se fizéssemos hoje uma seleção baseada apenas em qualidade, sem qualquer política de cotas, o resultado seria muito mais diverso, porque, de saída, a amostragem já seria maior.

Único autor negro da antologia de 2012, Vinicius Jatobá ouviu inúmeras vezes, em tom de piada, que só apareceu na Granta por “política de cotas”. À época, ele preparava um livro de contos e um romance que ainda não foram lançados. Até hoje, publicou apenas um livro: uma peça teatral na Croácia. Jatobá vive na Alemanha e diz que a antologia lhe abriu “portas modestas”. E continua publicando contos, crônicas e poemas em revistas.

— Verdade seja dita: não houve tanto interesse em me publicar. Fui recusado 67 vezes. Tão importante quanto publicar autores “diversos” é abrigar editores “diversos”. Se todos os editores pensam a partir do mesmo lugar, o mercado fica insosso. Sem mudança nos quadros editoriais, a “diversidade” será apenas cosmética, carente de impacto profundo — acredita Jatobá.

De fato, a diversificação da cadeia de produção do livro ocorre a passos lentos. No entanto, autoras mulheres, assim como escritores negros e periféricos, ganharam espaço na última década. Alguns episódios forçaram editores a dar mais atenção ao que era produzido fora da classe média e alta.

Em 2013, o Brasil foi homenageado pela Feira do Livro de Frankfurt, a mais importante do mundo, e enviou uma comitiva de 70 escritores. Apenas um negro: Paulo Lins, de “Cidade de Deus”. Em 2016, a Flip foi chamada de “arraiá da branquitude” por não incluir nenhum autor negro na programação. No ano seguinte, as mulheres eram metade dos convidados, e os negros, um terço.

Luta das minorias

Leandro Sarmatz, sócio da Todavia que publicou “Você tem dado notícias?” na Granta de 2012, afirma que a revista retratou “o que encontrava na vida literária e no mercado editorial da época”.

Hoje, diz Sarmatz, uma antologia que não tivesse a participação expressiva de autores da periferia, negros, mulheres, indígenas e LGBTQIAP+ de diferentes regiões do país “não veria a luz do dia”.

Sarmatz afirma também que até “a percepção do que é matéria literária” se alterou na última década. Entre as causas de tanta mudança, ele aponta as lutas das minorias e as políticas inclusivas implementadas no país a partir de 2003, especialmente as cotas.

— Chegou à universidade uma geração que, com razão, não se via representada na literatura brasileira contemporânea. Esses novos autores trazem vozes, registros e questões que apareciam apenas marginalmente na ficção nacional, e seus livros representaram um ganho político, social e emocional para os leitores e escritores da classe média universitária —diz.

'Bomba de efeito retardado'

Criada em 1889, na Inglaterra, a Granta é respeitada em todo o mundo, tendo apresentado referências importantes da literatura de vários países, como o britânico Ian McEwan, o americano Jonathan Franzen e a argentina Samanta Schweblin, entre outros. A editora Tinta-da-China, que edita a revista, informou ao GLOBO que discute a publicação de uma nova antologia dedicada aos melhores escritores em língua portuguesa.

Na edição com os jovens talentos brasileiros de 2012, todos os autores tinham ao menos um conto publicado. Os mais velhos — Carola Saavedra, Leandro Sarmatz e Michel Laub — nasceram em 1973. A mais jovem, Luisa Geisler, tinha 21 anos. Alguns já eram experientes, como Daniel Galera, que tinha no currículo três romances, títulos publicados no exterior e um Prêmio Machado de Assis, da Fundação Biblioteca Nacional.

Uns mais, outros menos, os autores daquela Granta prezavam pela prosa enxuta, escreviam sobre conflitos familiares da classe média urbana e, com alguma frequência, experimentavam a autoficção. À época, o crítico literário Luis Augusto Fischer comentou: “A Granta parece ter fotografado um momento cosmopolizante, antipovo e autorreferente” da literatura brasileira.

Parece estranho, porque o Brasil já experimentava resultados positivos das políticas sociais de governo, como ascensão da classe C e a maior presença de negros e pobres nas universidades. Por que, então, a literatura continuava tão distante da vida real da maioria da população? Fischer esboça uma resposta: a literatura é uma arte lenta. Só agora, diz ele, as questões da Era Lula começam a aparecer na ficção. Dez anos atrás, a literatura expressava a subjetividade da classe média confortável pós-Plano Real.

— A geração Granta foi a última que pôde escrever com relativa inocência do racismo, do machismo etc. Quem escreve hoje sabe que não pode passar ao largo desses temas — explica Fischer. — A literatura é bomba de efeito retardado. Fala hoje de um mundo que foi preparado há uma década. É diferente do rap, uma arte mais rápida, capaz de expressar a fervura do presente.

A geração Granta também mudou. Cada vez mais, a política dá as caras em livros de autores identificados com a autoficção, como Julián Fuks e Michel Laub.

Decisão coletiva

Autor mais premiado da antologia (um Prêmio Literário José Samarago e três Jabutis, entre outros), Fuks afirma que o conto publicado na Granta, “O jantar”, sobre um sobrinho brasileiro e uma tia argentina que sente saudades da ditadura, marcou uma “passagem para uma autoficção em que o pessoal é político”. Diante da deterioração do país, ele se dispôs “a responder a convocatória dos tempos” e passou a defender uma “literatura ocupada pela política”.

Em seguida, publicou dois romances: “A resistência” e “A ocupação”. O primeiro analisa o impacto da ditadura argentina (nacionalidade dos pais do autor) e do exílio numa família. O segundo nasceu numa residência artística num prédio ocupado por sem-teto em São Paulo. No romance, Fuks expressa o desejo de que sua narrativa fosse ocupada por outras vozes, menos privilegiadas.

— Antes, eu acreditava na autonomia da literatura, que um escritor fechado em si decidia sobre o que escrever. Acabei percebendo que essa é uma decisão coletiva, que se dá em diálogo. Não para vender mais ou ganhar público, mas para entender o que precisa ser dito — explica Fuks, que admite querer uma folga da literatura política. — Vou escrever um livro de amor.

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