A escritora portuguesa Matilde Campilho leva as mãos à cabeça, ri e suspira antes de responder como a vida mudou desde que conquistou o Brasil, em 2015, durante a Flip (Festa Literária Internacional de Paraty). A pergunta não é de todo inoportuna. O título da mesa que ela divide com o escritor Miguel Del Castillo nesta quarta, às 17h, na 26ª Bienal Internacional do Livro de São Paulo, é “Uma permanente transformação”.
— Mudou tudo. Mudamos todos. A verdade é que sempre muda tudo, não é? — provoca a escritora, em entrevista por vídeo.
Sim, mudou tudo. Em 2015, “Jóquei”, coletânea de poemas lançada no ano anterior, foi o livro mais vendido da Flip. Depois, Matilde nunca mais voltou ao Brasil. E não é mais poeta. No próximo sábado (9), ela lança “Flecha: histórias” na Livraria da Travessa, em São Paulo, às 16h. É um livro de textos curtos, de microcontos. Apesar da linguagem apurada e das imagens vivas que já caracterizavam seus versos, não é poesia em prosa. Todas as histórias têm começo, meio e fim. A maioria não passa de uma página. Algumas têm só duas linhas, mas nem por isso se confundem com versos. E são independentes entre si (“embora haja duas ou três que picam o olho umas às outras”): uma família operária janta numa noite de inverno; um uruguaio vende caixas de fósforos brasileiras para comprar uma camisa de seu time; uma avó assiste satisfeita aos netos partirem pinhões.
— “Jóquei” era um livro de poemas assente precisamente na relação entre o meu Rio e a minha Lisboa, entre as diferentes maneiras de falar, escrever e pensar em português nessas duas cidades. É um livro que representa o momento em que eu me apaixono pela língua e descubro na poesia uma maneira de expressar minha imaginação. Durante muito tempo, pensei que minha forma de expressão seria o cinema ou a pintura. Uma das poucas coisas que ligam os dois trabalhos é a forma talvez cinematográfica como componho as imagens — diz Matilde, que estudou História da Arte. — O âmago de “Jóquei” era a brincadeira com a língua. Em “Flecha”, assumo e exploro o caminho imagético da literatura e trabalho as curvas e contracurvas da prosa.
Mistura de sotaques
A edição brasileira de “Flecha”, diferentemente da portuguesa, traz um punhado de imagens que inspiraram as histórias: obras de Leonardo Da Vinci e Édouard Manet, a cena final de “Tempos modernos”, de Charles Chaplin, as pinturas rupestres da caverna de Lascaux, na França. Várias histórias se relacionam diretamente com as artes. Em uma delas, o romeno Constantin Brâncui esculpe uma de suas “Maiastras” (pássaros de bronze, de peito estufado e bico entreaberto) e quase ouve o bicho cantar. Em outra, um homem passa quatro horas ajoelhado diante de uma estátua de Maria com seu filho crucificado nos braços.
“Flecha” nasceu como uma imagem. Ou melhor: como um conceito depois simbolizado pela imagem da flecha. Primeiro, Matilde pensou em uma espécie de linha ou arame atravessando as histórias, que ia e voltava no tempo. Ao reler a “Ilíada”, poema épico sobre a Guerra de Troia, percebeu que, na verdade, pensava nas flechas que, nos versos homéricos, “atravessam, como projéteis, os homens, os deuses (que tentam passar a perna uns aos outros) e suas dores”.
A intimidade de Matilde com o Brasil vem de longe. Entre 2010 e 2013, ela viveu no Rio. Enturmou-se com os poetas da cidade e publicou versos no GLOBO. Também compartilhava, na internet, videopoemas que misturavam imagens inesperadas, músicas e notícias de jornal. Um dos maiores hits foi “Fevereiro”, que ainda pode ser ouvido no YouTube. Começa assim: “Escute só, isto é muito sério, anda, escuta que isso é sério! O mundo está tremendamente esquisito. Há dez anos, o Leo me disse que existe uma rachadura em tudo e que é assim que a luz entra, não sei se entendi.”
Naquele tempo, Matilde desenvolveu uma dicção “luso-carioca”: seus versos brincavam com os sotaques carioca e lisboeta. O sotaque da poeta também era meio “perdido no Atlântico”, como ela própria definiu na Flip. Ao falar com o público, soava carioca, mas a herança lusa voltava quando recitava seus poemas. Ela parecia até falar em versos. “A poesia não salva o mundo, mas salva um minuto”, disse ela em Paraty.
As referências à Antiguidade Clássica são frequentes em “Flecha”, de Matilde Campilho. Nas histórias, aparecem Antígona a enterrar seu irmão, Júlio César com os pés enlameados, prestes a atravessar o Rio Rubicão, Telêmaco, filho de Ulisses, o herói da “Odisseia”, e até Hipátia, a filósofa de Alexandria.
— “Jóquei” era um livro tropical, atlântico, assente na ginga luso-brasileira. “Flecha” é um livro mediterrâneo. Li há poucos dias um livro chamado “Breviário mediterrâneo”. Predrag Matvejevic (escritor bósnio) diz que o Mediterrâneo não é só a costa, mas vai até onde acabam a oliveira e o pinheiro-manso — conta. — “Flecha” começa com um pinheiro-manso e termina com uma rosa-albardeira, uma espécie de peônia que só existe nessa zona. Nos últimos anos, passei a prestar mais atenção a essa cultura que me rodeia.
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O caminho de Matilde rumo à prosa começou pela leitura. No tempo em que fazia versos, ela praticamente só lia poesia. Em entrevistas, chegava a dizer que se distraía com romances. “Há tanta vida lá fora”, justificava. Apesar de retornar à “Ilíada” sempre que não sabe o que ler, ela agora anda mais interessada em prosa: Natalia Ginzburg, Virginia Woolf, Dostoiévski. Começou a escrever prosa para entender a vida lá fora. Se a poesia salvava o minuto, a prosa explica o mundo:
— A poesia é muito rápida, e eu precisei da prosa para ouvir as coisas mais devagar nesta nossa época tão acelerada. Foi me fazendo mais sentido o parar com a prosa do que o acelerar com a poesia. Na prosa, tento pensar o que está a acontecer no mundo, politicamente, economicamente etc. A literatura nos oferece perspectiva — explica Matilde, que, no próximo domingo, às 17h, vai ler textos de prosadores portugueses do século passado ao lado do escritor angolano Kalaf Epalanga na Bienal do Livro de São Paulo. — Uma das coisas mais perigosas do mundo de hoje é não ter tempo para pensar e ainda assim ter que dar respostas rápidas e permanentes, que ficam cravadas em nós.
Questão de evolução
Em Matilde, ficou cravada não uma resposta, mas uma etiqueta: a de poeta. Nem todo mundo aceitou que a autora de “Jóquei”, livro que foi chamado de “acontecimento” pela crítica portuguesa e encantou os brasileiros, tenha abandonado os versos. E que “Flecha” não seja poesia em prosa.
— Para mim, “poeta” não era uma etiqueta, mas uma descrição do momento em que eu me encontrava, mas ficou agarrada a mim. Os anos se passam, começo a publicar tranquilamente em prosa, mas há pessoas que quase não deixam. Dizem: “É prosa, mas... vê-se mesmo que é poeta” — conta. — Tenho alguma dificuldade em lidar com isso. A literatura é acima de tudo liberdade.
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Para a escritora, “aos autores é permitido escrever o que quiser, da forma que quiser, sem nenhuma agenda sem ter que prestar contas a seu antigo eu”:
— O contrário disso seria não nos permitir evoluir. É como querer que uma banda toque sempre a mesma música. Quando saiu o último disco dos Strokes, na pandemia, senti um conforto porque havia ali algumas ligações com o primeiro álbum deles, que foi lançado no auge da minha juventude. Mas o novo álbum era muito mais maduro. Gosto muito dos Strokes, mas não ia querer que eles tocassem sempre “Is this it”.
Serviço:
"Flecha: histórias".
Autora: Matilde Campilho. Editora: 34. Páginas: 352. Preço: R$ 59.