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Por Ruan de Sousa Gabriel — São Paulo

Nas primeiras semanas da pandemia, Marcelo Marques, morador da periferia de Paulínia, no interior de São Paulo, terminou um namoro, foi demitido da empresa de dedetização onde trabalhava, teve crises de ansiedade e até cogitou trancar a faculdade de História. Para se animar, decidiu gravar um vídeo para seu canal no YouTube, “Audino Vilão”, onde falava sobre games e animes. Pensava em comparar a gestão irresponsável da pandemia no Brasil a um episódio da animação politicamente incorreta “South Park”. Mas o roteiro não saía. Mudou de ideia. Que tal juntar a teoria de Karl Marx e... zoeira? A inspiração veio de um verso de Mc Kauan: “É tudo nosso, o que não for nós toma”. Publicou o vídeo “Traduzindo Karl Marx para gírias paulistas” e foi tirar um cochilinho reparador.

— Acordei e o vídeo estava com 30 mil visualizações! Estava numa fase tão merda que não acreditei que alguma coisa ainda podia dar certo. Precisava publicar outro vídeo para aproveitar o hype. Olhei para o lado e lá estava “Crepúsculo dos ídolos”, de Nietzsche. Na hora, me veio na cabeça um título: “Nietzsche: o famoso roba brisa” — conta Marques, de 20 anos, cujo pseudônimo é inspirado no Pokémon Audino e na gíria de letras de funk.

O vídeo sobre Nietzsche também viralizou e já acumula mais de 400 mil visualizações. “Roba brisa” quer dizer “estraga-prazeres”. Desde então, Marques usa gírias das quebradas para traduzir a filosofia ocidental em vídeos como“Explicando a ‘Crítica da razão pura’ enquanto eu corto cabelo na régua’” (uma aula-relâmpago sobre Kant da cadeira do barbeiro) e “Se o amor é líquido nóis passa o rodo” (sobre o pensamento de Zygmunt Bauman).

Sem virar ‘boy’

Atualmente, o canal “Audino Vilão” tem 131 mil inscritos. Marques virou embaixador da Casa do Saber e já gravou com pensadores pop como Leandro Karnal e Mario Sergio Cortella e com o rapper Emicida. Acaba de lançar o livro “Filosofia para becos & vielas”, com Bruna Cursini, no qual passa em revista o pensamento ocidental, dos pré-socráticos aos existencialistas, com linguagem bem-humorada e coloquial. Apesar do sucesso, Marques garante: não virou “boy”.

—Quem tem origem humilde não vira boy. O boy é quem tem dinheiro, mas não tem noção, desmerece os outros. Hoje, consigo pagar as contas e levar minha mina para tomar um açaí no fim de semana. Antes eu só sobrevivia. Agora, comecei a viver — diz ele, que é o único provedor da casa. A mãe sofreu um acidente e está impossibilitada de trabalhar.

‘Essa letra é mó niilista’

Marques se apaixonou pela filosofia aos 16 anos, quando fazia um curso técnico em manutenção mecânica no Senai.

— Eu passava os intervalos com um pessoal roqueiro que falava: “Essa letra é mó niilista”, “Marilyn Manson foi influenciado por Nietzsche”. Um maninho um pouco mais cult me deu a edição pocket de “Crepúsculo dos ídolos” e disse: “Acho que você vai fazer bom proveito disso” — recorda. — Não consegui ler o livro! Era tudo muito complexo: as críticas à filosofia socrática, o papo sobre a decadência do Ocidente... Como assim eu não conseguia entender o livro que estava em português? Aquilo me instigou.

Marques assistiu a aulas sobre Nietzsche no YouTube e, ao cabo de alguns meses, venceu “Crepúsculo dos ídolos”. Tomou gosto pela filosofia e foi atrás de cursos e leituras. Quando começou a gravar os vídeos, passou a ter aulas particulares de filosofia três vezes por semana com os professores Carlão e Alex, diretores de escolas públicas no interior paulista.

Nos vídeos, Marques não economiza nas gírias e nas referências pop. Cita Xuxa para explicar a crítica da Escola de Frankfurt à indústria cultural. A cultura emo ajuda a entender o pessimismo de Schopenhauer. As alusões à realidade das periferias também são frequentes. Ele às vezes se dirige a um espectador hipotético que é entregador de aplicativos e quer tirar uma nota boa no Enem. O público é bem diverso. Tem “muita gente da quebrada”, professores que exibem os vídeos em sala de aula, universitários e um pessoal que estuda filosofia por hobby.

— Sou um Robin Hood. Pego de quem tem muito para dividir com quem não tem nada, com quem precisa. Distribuo uma riqueza imperecível: o conhecimento — afirma.

Fé e saber

Depois de viralizar com o vídeo sobre Marx, “brigadas comunistas” tentaram cooptar o youtuber, mas ele não é comunista, apenas simpatizante. Embora reconheça a influência do marxismo em sua visão de mundo, diz estar mais mais próximo (filosoficamente) do existencialismo e (politicamente) do anarquismo, mas descarta militar em coletivos. Sua causa é a luta contra a intolerância religiosa.

Criado na Igreja Universal do Reino de Deus, abraçou o candomblé há poucos anos e se iniciou no Ifá, prática divinatória baseada na comunicação com Orumilá, orixá da sabedoria e do conhecimento, e não escapou do preconceito. A mãe chegou a queimar as roupas brancas que ele usava no terreiro. Marques pretende aprofundar seus estudos do Odu, do Ifá e, no futuro, produzir conteúdo sobre a sabedoria africana. Também planeja vídeos sobre filosofia oriental e tatuar uma frase de Nietzsche: “Aquilo que se faz por amor está sempre além do bem e do mal”. O filósofo que matou Deus ainda é um de seus preferidos, ao lado de Kierkegaard e Aristóteles.

— E Maquiavel. Mas é meio chato falar que Maquiavel é meu autor de cabeceira, né? — diz ele, incapaz de conter uma gargalhada ao citar o filósofo de “O príncipe”. — Aristóteles me ensina como levar uma vida virtuosa. Kierkegaard me lembra da importância da fé. Nietzsche me ajuda a viver a espiritualidade de maneira crítica, sem transformá-la em muleta. Se errei, não foi por culpa de Exu ou Ogum. Fui eu que errei. Se acertei, é claro que meu orixá me deu força, mas isso não tira meus méritos. Para mim, a filosofia é uma pergunta: como quero viver?

Capa do livro "Filosofia para becos & vielas", de Marcelo Marques e Bruna Cursini, publicado pela Planeta — Foto: Reprodução
Capa do livro "Filosofia para becos & vielas", de Marcelo Marques e Bruna Cursini, publicado pela Planeta — Foto: Reprodução

“Filosofia para becos & vielas”. Autor: Marcelo Marques e Bruna Cursini. Editora: Planeta. Páginas: 176. Preço: R$ 44,90.

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