As crônicas de “Não me pergunte jamais”, de Natalia Ginzburg, alcançam um equilíbrio preciso. Com um estilo despojado, não raro humilde, recolhendo questões miúdas do cotidiano, a escritora italiana cria um espaço de silêncio que, pelo contraste, distingue — e critica — um mundo de tumulto.
O livro reúne textos publicados no jornal La Stampa, entre 1968 e 1970, exceto um de 1965 e outro de 1976. Enquanto o período de escrita está bem delineado, o gênero dos textos oscila: ao fim do volume, Ginzburg os chama de “memória”, “diário”, até “contos”. De todo modo, uma literatura bastante pessoal, muitas vezes na primeira pessoa do singular.
Mais do que o período, o gênero ou os pronomes, o que unifica este livro é o tom sereno, direto, límpido. Seja falando das amizades da infância, seja lembrando da Itália no pós-guerra, ora comentando Richard Wagner, ora a busca de uma casa nova, Ginzburg exibe sempre a mesma postura avessa a ilusões, rente à realidade, sem sucumbir a ela nem chamar atenção a si.
A própria escritora oferece uma síntese de seu estilo. Na crônica em que homenageia Ivy Compton Burnett, Ginzburg comenta a escrita da inglesa com palavras que descrevem sua própria literatura: frases “precisas e secas como bolinhas de pingue-pongue”, de “uma clareza alucinante, nua e inexorável”. Também da italiana se pode dizer que “a presença da poesia era como a presença da natureza: totalmente invisível, (...) estava lá assim como o imenso e fosco céu”.
Esses trechos também revelam uma qualidade de sua prosa. Ginzburg faz do uso de adjetivos uma arte. Criticado pelos manuais de criação literária, esse tipo de palavra não costuma sobreviver às várias revisões e reescritas; é limado para dar ao texto mais objetividade. Seria melhor aprender com Ginzburg, que nunca desperdiça um adjetivo.
“Alucinante, nua e inexorável”, por exemplo, expandem o sentido de “clareza”, substantivo, aliás, derivado de uma característica. Poderia ficar vago ou verborrágico. Não: os adjetivos nos situam no centro da teia de impressões da escritora; fazem com que o habitemos. Veiculam a subjetividade com delicadeza e discrição estranhas ao leitor contemporâneo, acossado pela estridência das redes sociais.
Criar um espaço meditativo em meio ao barulho é algo que a escritora precisou fazer já na primeira publicação dos textos de “Não me pergunte jamais”. Seu contexto original era tão ou mais turbulento que o de hoje. A série do La Stampa, por exemplo, começa em dezembro de 1968. É o fecho de um ano convulso, sobretudo na Itália, com manifestações revolucionárias da juventude que reverberariam pela década de 1970.
Ginzburg não coloca esse mundo revolto em primeiro plano, mas tampouco o ignora. Seu texto de dezembro de 1968 se chama “A velhice”. Ao tratar dela quando só se falava da juventude, Ginzburg interroga seu tempo olhando-o de viés, de um ângulo muito particular, muito pessoal: “O mundo que temos hoje diante dos olhos não nos espanta, ou nos espanta muito pouco, mas nos escapa e nos parece indecifrável”. É um esforço sutil de compreensão do momento histórico, sem submergir nele nem despachá-lo. Firmeza e humildade na mesma medida.
Um estilo firme, humilde e despojado que, nos melhores momentos, supera o sentencioso para chegar à sabedoria. Assim descrito, o livro de Ginzburg talvez lembre o auge da crônica brasileira, em meados dos anos 1950 e 1960, com autores como Rubem Braga, Fernando Sabino ou Paulo Mendes Campos. De fato, aqui e ali, há o mesmo Eu volátil, a mesma mistura de diário e comentário noticioso, a mesma “vida ao rés-do-chão”, conforme Antonio Candido.
Mas Ginzburg tem uma vantagem em relação aos “sabiás da crônica”. Eles cediam por vezes à autocomplacência, escorregando do poético para o piegas. A italiana não. Compare-se o “Retrato de escritor” dela às tantas crônicas autorreferentes deles. No seu texto, Ginzburg disseca as dobras da criação literária, atenta às cisões inconciliáveis e também ao aspecto ridículo e irônico que o desejo deles de embelezamento, de charme, às vezes escamoteava.
Tanto quanto uma concepção de literatura, o estilo lúcido de Natalia Ginzburg parece um conjunto de princípios éticos. Uma aplicação, talvez, das “pequenas virtudes” que ela defendeu em outro livro. Mais de 50 anos depois da publicação original, as crônicas de “Não me pergunte jamais” não deixam dúvida —ilustram qualidades que continuam escassas.
Henrique Balbi é escritor e professor de literatura, mestre em Estudos Brasileiros e doutorando em Literatura Brasileira na USP
“Não me pergunte jamais”
Autora: Natalia Ginzburg. Tradução: Julia Scamparini. Editora: Âyiné. Páginas: 250. Preço: R$ 64,90.Cotação: Ótimo